Há algo sangrando em algum lugar

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São tempos estranhos
de posturas difíceis
de complicadas transições
Há uma insegurança a rondar
Uma melancolia latente
Um medo aparente
Sinto que há algo
sangrando em algum lugar

Agora aqui em casa
está tudo tão abafado
Paredes, pinturas
tecidos, concretos
quadros, retratos
torneira pingando
lixo acumulado

Aqui nesta casa jaz
uma porção de amores,
peças que ficaram para trás
Um anel de presente
Um caderno rascunhado
Um pingente, uma corrente
Um papel amassado
Um show em um bilhete
Um perfume semiacabado
Aqui nesta casa, amores em vão
Casa esta que outrora
fora chamada de coração

Por vezes cercado aqui
por parcos rostos conhecidos
Me pego perguntando
a esse estranho amigo
no espelho
qual a razão
de tudo que foi vivido

Embriagado e sozinho
me respondeu:

Para que você possa beber
em homenagem a alguém
Acompanhado deste alguém
ou sozinho sem ninguém
Que brinde a chance
que tem de viver alguém
E que de cada gole
desça o gosto
da ternura da saudade
e afogue o amargo da distância
que por ora invade
Mas hoje, tão somente hoje
que você possa apenas
se embriagar em alguém


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Tudo envolta de volta...

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Mais uma madrugada e cá estou eu, encostado no meu carro, no mesmo posto a caminho de casa, tomando uma cerveja e olhando para o nada. Bom, não estou exatamente aqui, encostado no meu carro, no mesmo posto a caminho de casa, tomando uma cerveja e olhando para o nada, mas esse texto foi pensado enquanto eu estava encostado no meu carro, no mesmo posto a caminho de casa, tomando uma cerveja e olhando para o nada.

Logo ali à frente, após o viaduto que me leva da minha casa até a casa da minha mãe e ao bar do meu pai, tive talvez o único momento de poesia na minha vida nos últimos meses: uma sacola plástica branca voava no meio da tarde, no meio do caminho, enquanto o céu se escurecia prevendo uma chuva e o sol refletia no escuro asfalto.

Sim, uma sacola plástica de mercado. Contrastando com o asfalto. Incólume, sobrevoando os carros que abaixo dela corriam para algum lugar. Não durou mais do que alguns segundos, mas sua dança no ar e sua sombra no chão me fizeram refletir sobre coisas que não sei porquê acabei refletindo. Uma projeção de liberdade tardia, talvez? Uma necessidade de me desprender de conceitos? Uma simples contemplação do absurdo-nada? Não sei... só sei que desde aquele dia, pensei em escrever um poema. É, foi um momento poético para mim e certamente você não conseguirá entender. Mas a única coisa que consegui pensar desde então foi:

E enquanto voando ela dançava
sua sombra desenhava
labirintos pelo chão

Apenas isso. Há quase alguns meses, semanas passadas, naquela dança de uma reles sacola plástica, o que me fez ficar repetindo comigo mesmo foi essa estrofe. Apenas isso. Não consegui e não consigo fechar um poema em cima disso. Tenho apenas essa coisa que me martela constantemente:

E enquanto voando ela dançava
sua sombra desenhava
labirintos pelo chão

Agora, ao ir buscar minha terceira cerveja no posto, entrei segurando as lágrimas. Pensei que isso tivesse me dado um tempo, tivesse me dado uma folga, talvez, até, ido embora. Mas não: apenas um preâmbulo de três semanas entre minha última crise de ansiedade. Desde então, comecei a tomar um remédio natural calmante para isso e estava servindo a contendo. Mas esse blues, essa melancolia... essa dupla nunca te deixa de fato, meu caro. Simplesmente se acorrenta ao seu âmago e fica ali, esperando uma migalha de uma insegurança, um respaldo de desatenção, um momento mais sóbrio para simplesmente te deixar no velho estado costumeiro de sempre.

Uma dupla de policiais me olham desconfiado. Venho ao mesmo local no mesmo horário há anos, a atendente me conhece e sempre é solícita para comigo, mas a dupla está ali, a me fitar enquanto os observo pela tangente do meu olhar. Isso é normal, as pessoas me olham assim por onde quer que eu ande: mercado, shopping, posto, rua, bar, trânsito, em qualquer lupanar. Às vezes me incomoda, como hoje; no resto do tempo, eu gosto e provoco.

E enquanto eu volto para casa, cantarolando Seagull, do Bad Company e finalmente chorando, para terminar esse texto que escrevi mentalmente encostado no meu carro, no mesmo posto a caminho de casa, tomando uma cerveja e olhando para o nada, penso apenas uma coisa:

E enquanto voando ela dançava
sua sombra desenhava
labirintos pelo chão


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Preciso de uma cura

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É preciso uma cura
para esta taquicardia minha
que durante a noite, me acorda
durante o dia, me atormenta
Dentro de casa me aprisiona
fora dela, me acorrenta

É preciso uma cura,
mas onde a encontrar?
Se em tudo ao que me jogo
em busca desta vil cura
apenas me faz dela afastar?

Perdi minha poesia
há muito dentro de mim
Tentei suicidá-la
Se bem o fiz, não sei
Mas há muito não a encontro
mais dentro de mim

Talvez seja ela, me batendo
pedindo para sair
Pois quando a sufoquei
esperei seu perecer
em busca de não mais sofrer
e cessar o choro porvir

Mas a maldita sobreviveu
Em algum canto do peito
se escondeu
E quanto mais ela bate
impulsos em pulsos
implorando para sair
mais eu refuto e reluto
E a acalmo por ora
com estes versos de agora
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#ContosDoOgro: O anjo e a duquesa

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Esse é apenas mais um conto de fadas diferente daqueles que você conhece... Talvez seja apenas mais um dos contos contados em tabernas por ogros embriagados, sem nenhuma pretensão de convencer a quem os ouvem e que são repassados como fábulas irrisórias.
Havia, há não muito tempo, um reino desses que todas histórias contam: um castelo, um rei, uma rainha e um povo reinado. Não é preciso entrar em detalhes sobre como eram e o que faziam, busque referência em tudo o que já leu e assistiu sobre histórias assim: é a mesma coisa.
Como em várias noites das semanas daquela época, o rei promovia festas aos mais próximos, para rejubilarem-se com as conquistas fartas em que se fartavam. Lembre-se dos salões lotados por vestidos e perucas e arrogâncias e mentiras e saberá do que estou falando. Uma das atrações da festa era uma boba da corte, principal elemento do qual o rei se gabava de manter em seu rol de funcionários.
Sim: naquele castelo, uma bufona fazia o papel de agradar a realeza. Como tal, cumpria sem pudor sua função. E era sempre ovacionada pelo clero, mesmo quando os criticavam em seus costumes e conceitos e atitudes e devaneios. Debochava da monarquia e ainda era agraciada com palmas. Ninguém sabia seu nome ou conhecia seu rosto. Sempre bem maquiada e com roupas que escondiam seu perfil físico. O rei nunca fez questão de conhecê-la além daquelas vestes por um simples motivo: um pedido da própria bufona. Era simples: ela manteria sua identidade preservada e um quarto à sua disposição com apenas uma chave disponível e o rei teria seus bajuladores sempre bem humorados com suas apresentações. Por ser um pedido razoável, o rei aceitou sem questionar e ordenou que todos assim a respeitassem.
E assim seguiram por semanas e meses, sem nenhum conflito nos interesses. Mas, como a curiosidade não matou apenas o gato, sempre há quem não se contente com o que os olhos veem aparentemente.
Desconfiada, sabe-se lá porque, a rainha resolveu um dia seguir sua bufona. Logo após sua apresentação, pediu licença ao seu rei, alegando um mal estar súbito, e correu pelos corredores do palácio em busca de saciar sua curiosidade. Esgueirando-se por curvas e escadas, abria e fechava portas que apenas ela tinha cópia das chaves e assim encontrou a boba adentrando em seu quarto e correu espiar-lhe pela fechadura.
Dentro havia apenas um espelho centrado no cômodo, uma cadeira e uma cômoda. Ao ver sua funcionária sentar-se, notou o cansaço em seu rosto. Era como se toda aquela luz que ela reluzia no salão se apagasse feito brasa molhada. Ela era uma mulher triste e cansada.
A rainha logo achou que seria apenas um quarto feito de camarim, mas logo entendeu que não poderia estar mais errada: por detrás do espelho, surge a figura de um homem alto, sem camisas, trajando apenas uma calça de veludo vermelho dobrada até os joelhos. De longos e enegrecidos cabelos e barba espessa quase acinzentada pelo tempo, ajoelhou-se em frente à bufona e começou a tirar-lhe a maquiagem de trabalho.
Com poucas palavras e tom de voz sereno e áspero, aos poucos foi limpando o rosto daquela que, cansada, se postava à sua frente. Conforme conversavam, um breve sorriso começava a brotar no rosto daquela que, lentamente, era despida de sua fantasia: o chapéu se acomodava ao seu lado, no chão, revelando cabelos escuros e desmanchados; o dorso respirava ao ter sua roupa desabotoada; a tinta em sua face era aos poucos retirada com farrapos enrolados e banhados em uma tina de água entre suas pernas. A desconstrução era natural e sem movimentos bruscos.
A rainha exaltou-se: iria descobrir dois segredos na mesma noite. Quem, afinal, era essa personagem que tanta alegria trazia ao reino nas noites alternadas de festa em sua casa?
Ao terminar, o homem levantou-se e colocou-se entre a cadeira e a fechadura, barrando a visão da rainha. Isso durou apenas uns minutos, o que fez com que a mesma ficasse incomodada com a aparente frustração. Mas durou pouco tempo: ao sair da linha de visão em que se colocou, o homem finalmente abriu espaço para a revelação de um rosto refletido no espelho: tratava-se de uma duquesa que fazia parte do séquito da rainha. Justo a duquesa que, estranhamente, sempre negava os convites de fazer parte do corpo de baile da realeza. Alegava fortes dores de cabeça que se agravavam com o excesso de barulho e luz e bebida. Como a rainha não fazia questão de sua presença, nunca desconfiou e sempre deixou de lado as recusas reincidentes de sua duquesa.
Atônita com a descoberta, sua majestade pensou em abrir a porta para questionar-lhes do que acontecia, mas se recolheu novamente atrás da fresta da fechadura ao notar que sua duquesa sorria e aparentava estar descansada, com aquele mesmo ar que sempre lhe fora tradicional nas manhãs de caminhada pelos campos que cercavam o castelo e nos encontros ao final da tarde com chás e bolos e fofocas sobre as demais rainhas e princesas dos reinos adjacentes.
O sorriso da bufona era tão mais aliviado do que aqueles que ela mesma proporcionava nos andares de cima de onde se encontravam naquele momento. O olhar era diferente, estava iluminado e beirava a perfeição. Era como se uma nova mulher estivesse sentada naquela simples cadeira daquele quarto vazio de mobília, mas repleto de vida e luz. Ao invés de sentir inveja, a rainha sentiu paz. Poderia acabar com aquela palhaçada, se me perdoa o termo alusivo.
Assim, a rainha levantou-se e bateu o pó de suas vestes que ajoelhadas à porta se sujaram e voltou para o salão. Mas aquela imagem a perseguiria por semanas a fio.
             
Era uma remota manhã de primavera, o sol jogava nas planícies suas calorosas madeixas douradas que penteavam a relva jovem e esverdeada, enquanto o vento fresco lambia as árvores que sorriam ao longe com o indefectível som de suas folhas balançando. O séquito seguia sua caminhada, mas dessa vez sem sua rainha, que resolveu naquele dia voltar ao quarto em questão. Sabia que sua duquesa não estava lá, já que a mesma estava em um dos campos. Despistou as serviçais, desceu as mesmas escadas, curvou os mesmos corredores, abriu e fechou as mesmas portas e finalmente se colocou em frente ao quarto.
Bateu uma vez. Apenas o silêncio respondeu. Bateu pela segunda vez. Novamente, o mesmo. Tornou a bater pela terceira vez e ordenou para que, quem estivesse ali dentro, abrisse a porta ou então traria a guarda real para arrombá-la. Esperou o silêncio ser profanado pelo andar sorrateiro e receoso de passos largos e firmes.
Ao escutar a trava se destravar, abriu com certa cautela, não sabendo como seria recebida por aquele que ocupava o cômodo. Empurrou a porta e o encontrou de costas, de cabeça baixa, vestindo a mesma calça de veludo vermelha dobrada até os joelhos. A rainha adentrou, fechou a porta atrás de si, deu um passo para o lado e alcançou a imagem do homem refletida no espelho, aquele mesmo espelho que se firmava no centro do quarto como uma janela da realidade que os cercava. Antes de pronunciar qualquer palavra, notou duas cicatrizes enormes em forma de V em suas costas.
- Qual seu nome, rapaz? – perguntou-lhe com a voz de autoridade que lhe cabia ao momento.
- Me chame apenas de Fil... senhora – respondeu-lhe o ser que seguia com a cabeça baixa em frente ao espelho. A voz estava um pouco diferente daquela que havia ouvido semanas antes, mais embargada, e o linguajar inadequado para alguém que se dirigia à um membro da realeza. Cogitou tocar-lhe as cicatrizes nas costas, mas conteve o ímpeto.
- E o que fazes aqui? Sabe quem sou eu? Olhe para mim enquanto falo com você...
Ao virar, o homem de calça de veludo vermelho tirou os cabelos longos que cobriam o rosto de forma desordenada, tal qual uma cortina preta e ondulada. Colocou-se de frente para a rainha e respondeu:
- Sim, majestade: sei com quem estou falando...
Notou que agora era o semblante do homem que estava cansado, muito assemelhado ao da duquesa na noite em que a descobriu como bufona. Mesmo com a voz embargada e o olhar cansado, sentiu um estranho acolhimento vindo daquele que se agigantava à sua frente.
              - Posso sentar-me nesta cadeira que é do meu palácio?
              - Fique à vontade... como vossa majestade mesma disse: a cadeira é tua.         
              Colocou-a na parede oposta à porta, com o intuito de deixar que a pequena janela de vidros sujos iluminasse melhor aquele com o qual conversava. Ao sentar-se, viu que atrás do espelho havia uma série de ânforas de vinho espalhadas pelo chão.
              - Agora me diga: o que fazes aqui? Como nunca o vi por todo o castelo?
              - Essa era uma das exigências da duquesa, não?
              - Exato: mas qual a finalidade disso tudo? Ela o mantém escravizado aqui dentro, é isso?
              - Não exatamente, majestade... não exatamente.
              - Acho isso um pouco improvável, meu caro rapaz, já que suas costas estão com marcas severas de uma aparente agressão.
              Ao ouvir isso, o homem apenas curvou-se um pouco para a frente, levando uma das mãos até os ombros, como que se lembrasse do que produziu tais cicatrizes.
              - Posso me sentar, majestade? Assim contar-lhe-ei o que queres tanto saber.
              A rainha consentiu com a cabeça e viu o homem sentar-se à sua frente, entre as ânforas espalhadas pelo chão.
              - Se incomoda caso eu tome algum gole de vinho, minha rainha? Aliás: estás servida de um pouco?
              - Não acho apropriado para o horário, mas sirva-se como achar conveniente... – assentiu sua majestade ao apoiar um dos braços no braço da cadeira.
              - Até que ponto acreditas em lendas e fábulas? – questionou o homem antes de virar um bom e longo gole de vinho de uma de suas ânforas.
              - São necessárias para manter a harmonia do reino. Muitas ajudam a manter a ordem, já que não são questionadas pelos súditos. Eu mesma cheguei a acreditar em várias quando criança. Mas por que? O que isso tem a ver com a minha pergunta, rapaz?
              - Porque preciso saber até que ponto vossa majestade me considerará louco e me mandará para a fogueira por bruxaria, talvez...
              - São épocas passadas, meu jovem... – assim o chamou, apesar de não senti-lo tão jovial assim.
              - Fui designado para cuidar de vossa duquesa... isso lhe soa loucura?
              - Designado por quem? Algum outro rei o infiltrou? Meu séquito corre risco de um atentado? Me diga agora e ordenarei que os guardas o prendam por traição! -  respondeu quase se levantando da cadeira.
              - Calma, minha rainha... se acalme... – se postou o homem em sua frente, ajoelhando e segurando seus braços junto à cadeira.
              Notou o mesmo tom de voz que ouvira naquela noite e se acomodou novamente.
              - Sou um anjo... e fui escolhido para proteger a duquesa ao longo dos tempos.
              - Um anjo? Ao longo dos tempos? Como assim? – sorriu ironicamente a rainha.
              - Exato: séculos e mais séculos ainda virão nesse desígnio divino, por assim dizer – sorriu de volta.
              Sua primeira reação seria de deboche, mas deixou que falasse mais. Talvez a manhã de primavera a tivesse deixado mais leve.
              - Nunca vi um anjo sem asas... – rebateu a rainha.
              - Isso explica as cicatrizes... – respondeu-lhe, zombeteiro, de volta.
              - E isso aconteceu como?
              - A única coisa que eu não poderia fazer, eu fiz... Minha única missão era admirar e proteger a duquesa, mas nunca poderia tocá-la e me apaixonar por ela. Mas quando me vi envolto pela beleza daquele olhar, esqueci-me de minha condição e fiz justamente a única coisa que não poderia fazer. Como castigo, sigo esperando o nascer e o morrer daquela cujo a qual fui designado a proteger... e sem poder ter minhas asas de volta.
              - Então essa não é sua primeira vez com ela? – arguiu a rainha, deixando toda a dúvida de lado e aceitando a versão que ouvia.
              - Certamente... assim como certamente não será a última.
              O homem esticou as pernas, abaixou a cabeça e respirou fundo, lembrando de todas as eras que passou naquele eterno nascer-morrer de sua protegida.
              - Mas isso é muita crueldade... Não há o que ser feito? Você não pode se tornar mortal, não pode de alguma forma reverter esse castigo?
              - Algumas coisas são apenas consequências de nossos atos, majestade. E não veja como castigo ou crueldade: tive opções, arquei com a escolha de uma e vivo sob tutela dela. Posso não governar homens, posso não conquistar tesouros, mas em algum mundo, eu sou único no mundo de alguém. Isso me basta...
              - Mas então você poderia reverter isso.
              - Sim: que eu renunciasse o sentimento, renegasse a proteção que me cabia e assim seria poupado do desaladamento. Nem sei se existe essa palavra, mas não vejo outra melhor pra ilustrar alguém alado que perde suas asas. Vossa majestade consegue pensar em alguma?
              - Não... pode ser essa mesmo, está boa.
              - Enfim... pode me levar para a masmorra agora, minha rainha. Essa é a única história que tenho para contar.
              - Não sejas tão tolo e me sirva um pouco deste vinho, sim, meu rapaz?
              - Achei que não fosse pedir...
              - Mas sabes que a duquesa está prometida ao duque do condado vizinho, não sabes? – indagou a rainha antes de virar um gole de uma ânfora recém-aberta.
              - E como sei... e como sei. Mas isso não faz diferença.
              - E por que não? Sabes que nunca poderá tê-la como espera, não sabes?
              - Sei... Mas temos o que alguns podem chamar de pacto. Vejas: enquanto ela precisar, estarei por aqui para recarregá-la para fazer o que precisa fazer. Enquanto ela sai, me recarrego em poesia, em dor, em vinho.
              Ao dizer isso, apontou para um canto assombreado do quarto, onde uma pilha de folhas manuscritas se acumulava com respingos de suor e vinho.
              - Como isso, se estás com aparência tão cansada, fragilizada e embriagada? Como isso é possível, diga-me? Não me soa nada justo.
              - Me recarrego com um simples sorriso satisfeito ao vê-la sair com a face refeita e a identidade reconquistada. Pelo menos assim gosto de ver... E justiça é um conceito muito particular: o que é mais justo: viver para alguém ou morrer sem ninguém?
              - Não fosse o vinho tardiamente bebido, diria eu que não existes, meu rapaz...
              - Aproveite, então, a dose e me conte mais sobre o que te apetece. Talvez eu suma na penumbra desta noite e vossa majestade nunca mais volte a me encontrar.
              - Bem... – e começou a falar, tirando seu manto real que a protegia do mundo.

O sol já não adentrava mais a janela de vidros sujos e embaçados, o que indicava um certo virar das horas. Ao perceber que havia passado muito tempo ali dentro, conversando com o homem de calça de veludo vermelha, a rainha assustou-se:
              - Preciso ir. O adiantar das horas mal me acometeu e talvez já estejam me procurando.
              O homem se levantou e a ajudou a se levantar da cadeira, estendendo-lhe uma das mãos. Ao levanta-la, beijou a mão que segurava. Ao se encaminhar até a porta, antes de abri-la, virou-se para ele e perguntou-lhe:
              - Mas... o que ganhas com isso, com tanto sacrifício?
              O homem sentou-se na cadeira, segurou os longos cabelos com uma das mãos, apoiou a outra no joelho, respirou fundo e respondeu:
              - Vossa majestade já viu o brilho daqueles olhos quando sorriem? Quando vires, verás que não é nenhum sacrifício...  - e voltou a alcançar uma ânfora recém-esvaziada, buscando por aquele último gole.
Ao sair, a rainha se encontrou com a duquesa a poucos passos da porta. A incredulidade estava estampada em seu rosto, da mesma forma como sua maquiagem de bufona a camuflava de todo o reino. Sua voz não saia, suas pernas não andavam, seus olhos não piscavam. A rainha ajeitou seu vestido, dirigiu-se até sua duquesa e, ao passar por ela, parou ao seu lado, ladeando ombros, com corpos em direções opostas. Olhou por cima deles e disse à duquesa, sem perder a postura ereta:
- Por que o mantém perto?
- Por que preciso me ver além da maquiagem, majestade...
- Sabes que não me resta nenhuma alternativa, não sabes?
A duquesa mal conseguia responder, quando ouviu de sua rainha:
- Posso emprestar de ti teu anjo? – e seguiu pelo corredor, preenchendo-o com o barulho ecoado de seus saltos em passos um pouco desalinhados pelo vinho.

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Errados olhos cerrados

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores: 0 comentários
Me pedes, então,
para que te escreva
sobre teus olhares,
mesmo os de tristeza
que me causam fortes
pesares

Mesmo quando escudados
sob lágrimas órfãs
há em ti dois olhares
E teus olhos cerrados
são as próteses erradas
que modificam tua beleza
mesmo trazendo à tona
tanta coisa de ti
Segues bela
mas apenas um deles
te torna rara
te faz fera
te revela à vera

Estes olhos que hoje revi
são os mesmo que trago
cravados em mim
como os mais belos
que vejo, verei e vi
Há tranquilidade
na tempestade
que eles afugentam
ao se revelarem
no cair do teu pranto alegre

Te contemplar é uma arte
envolta por todo mistério
causado por teu olhar

Mas são dos teus olhares
de final de semana
os que mais temo
Os escondem de ti
e mascaram teu ser
apesar de protegerem
aquela que ainda resiste
aqui e aí dentro

Reconhecendo o mais belo
busca-se te reconhecer ali atrás,
entrincheirada em sua defesa
de se esconder para sobreviver
o tempo que for necessário
para, enfim, se revelar

Teus olhos, de uma vez entendas,
são a síntese de tua essência
que navega à deriva
no conturbado mar
que carregas em ti

Quando necessário,
faça deles teu submarino
para te guiar nas águas
mais negras e profundas
Mas saibas que mereces
apenas um veleiro sob o luar
a contrastar com o azul da calmaria
que evidencia o verde do teu olhar

Não os deixe se acinzentarem
pois precisamos deles
com essa luz a irradiar
feito farol em meio à neblina
onde buscamos nos aportar
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Começamos a #OgroFotoDoDia!

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores: 0 comentários
Seguinte: agora vamos brincar de fotografar... A gente já posta tanta porcaria e quer postar mais, por que não, então, fazermos disso uma brincadeira? Pelo menos agora teremos um motivo para clicar algo diariamente sem que nos recriminem... E mesmo que o façam: mandamos um "foda-se" e tudo bem.

Vamos fazer a #OgroFotoDoDia!

Todos os dias, postarei um tema e você vai fazer a foto e postar. Pode ser no Instagram, Facebook e Twitter! Pra não ter desculpas do tipo: "ah, mas eu nem tenho celular que instale o Instagram...". Posta no Face, sobe pro Twitter, se vira, nega! Com a hashtag acima, obviamente...

E para incentivar, sortearei algo entre as que mais participarem. Espero que façam todo dia, mas entenderei se recusarem um ou outro tema... Só não reclama depois. E eu sei que você vai reclamar um pouco. Aham, vai sim que eu sei!

- E o que você vai sortear, meu querido Ogro? Seu corpinho ébrio, seu lindo? - me perguntaria você.
- Não: esse corpo não funciona nem como troco, lerda!

Vou sortear uma caixa de artesanato produzida por mim. Sim, eu tenho esse dote artístico também... Ficam lindas, umas coisinhas fofas da mamãe! Uma caixa, um baú, no final eu escolho e você, caso ganhe, aceitará de qualquer jeito porque fui eu que fiz!

Vamos? Topa? Vai ser legal, vai... até eu vou postar também!
Beleza, então... suas lindas!

Para quem pediu e quer acompanhar o que postam, eis os links das pesquisas das tags:
Instagram  |  Facebook  |  Twitter


Os temas de agosto são:




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#ContosDoOgro: Os ETs roubaram meu emprego!

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores: 0 comentários
Passada uma semana desde sua conversa com a vizinha de baixo, Fil notou que a costumeira gritaria não existia mais. Tampouco via Ludmila brincando pela garagem. Foram dias silenciosos e olha que ele praticamente não saiu do apartamento. Ficou três dias sem olhar para a rua, sem botar o corpo pra fora da porta, sem tomar banho, sem sobreviver. Apenas respirou. Estava cansado, a mente padecia e o peito enrijecia. Pensava em tudo e concluía nada. Aquilo já estava ficando chato demais, até mesmo pra ele.
Ainda tinha alguns trocados guardados no envelope e resolveu sair, procurar algum bar para afogar as mágoas. O problema é que as mágoas aprenderam a nadar; agora ele as ensinava a beber. E bebiam mais do que ele.
Botou um tênis velho e sem cadarço, pegou os óculos escuros companheiros de duas décadas e saiu. A chave deslizava ao trancar a fechadura. Lembrou-se de um boteco que ficava distante apenas algumas quadras de sua casa. Chegou a freqüentar algum tempo aquele local pois o dono era pai de um conhecido. Botecos bem freqüentados e com cara de boteco eram raros: ou se transformavam em “barzinho” para a molecada ou virava reduto de pessoas com caráter questionável, quase como se fosse uma assembleia do lixo social. Um lixo não-reciclável, por sinal.
Ao passar em frente ao apartamento de Ludmila, não consegui evitar: tentou olhar pelas frestas da porta, buscando algum sinal de vida. Era muito estranho aquele silêncio, ainda mais vindo daquele lugar. Não ouviu passos, vozes, sequer o ranger de móveis, nem sentiu o vento passando por baixo da porta. Realmente estava estranho, mas como estava com sede, logo saiu.
Como estava no final da tarde, resolveu andar. Caminhou por vinte minutos e logo chegou ao boteco. Era simples, com portões de ferro vazado pintado de branco, paredes amarelas descascadas pelos anos sem pintura, um sujo toldo azul cobria as duas portas que se abriam pra cima, sempre promovendo um forte barulho de aço se dobrando. Era um bar comprido, com uma mesa de bilhar no canto direito, o balcão do lado esquerdo se estendendo até o fundo. Algumas mesas, pôsteres de propaganda de várias bebidas, alguns novos, alguns antigos. Era grande o ambiente, com teto alto e uma velha TV ao lado da porta principal. O dono, um botequeiro de 50 anos, estava ali há 20. Um tipo alemão, com bigode espesso e longo, cabelo fino e loiro e curto, aparado em máquina, com cara amarrada mas bem receptivo.
Cerca de meia dúzia de clientes sentavam-se ao balcão ou às poucas mesas espalhadas. Fil poderia passar dias ali dentro, apenas bebendo e jogando conversa fora. Pediu uma cerveja e o dono, ao servi-la, perguntou:
- Você já esteve aqui antes, não?
- Já estive, sim... mas foi há alguns anos.
- Eu me lembro: você é o Monteiro, colega do meu filho. Lembro que você odiava seu nome. Qual era seu apelido mesmo? Mir? Tim?
- Não, meu nome é Lobato. Mas me chame de FIl... apenas Fil -  respondeu, resignado. Realmente não gostava do seu nome.
- É... você é moleque demais pra se chamar Lobato. Lembra nome de velho, não é? – respondeu o homem, perguntando de volta e limpando as mãos num guardanapo de pano que estava pendurado ao lado da pia.
- É... e você se chama como, mesmo?
- Sérgio. Mas todo mundo conhece aqui como Bar do Serginho. Aliás: bar, não; isso aqui é uma comunidade! É ou não é? – perguntou, batendo no balcão, aos que estavam ali encostados.
-É, Serginho... é – responderam como quem respondem repetidamente à mesma pergunta.
Recolheu as moedas que Fil jogou para pagar a cerveja, abriu uma gaveta embaixo do balcão de madeira, jogou-as dentro e voltou a se sentar no começo do balcão de pedra. Sim, tinha dois balcões, um encostado ao outro. Peculiar, do jeito que um boteco precisa ser. Tinha também dois freezers, um deles estava desligado e servia apenas como suporte para os jornais do dia e um rádio velho. Fil pediu para dar uma folheada nos jornais e Serginho respondeu:
- Dá a volta e pega! Tá mais perto de você do que de mim, caralho!
Não poderia haver ambiente mais aconchegante do que aquele. Depois de olhar pelas páginas dos diários sem muito interesse, devolveu-os e pediu mais uma cerveja. Sentado naquele banco alto de madeira, com os dois cotovelos apoiados no balcão (o de madeira), olhando para a parede de azulejo marrom, apenas bebia sem buscar nada de inspiração. Apenas tentava entender o que aconteceu com Ludmila. Nunca esqueceu aquele olhar de medo, aqueles gritos e aquele despertar preocupado provocado por aquela menina. Algo estava errado, não era pra ser assim.
Enquanto enchia novamente seu copo, sentiu uma mão encostar em seu ombro. Virou a cabeça para o lado e viu um velho de barba branca e preta, cabelos brancos e pele preta. Tinha um olhar meigo e um sorriso cansado, envolto por uma pele castigada pelo tempo. Na cabeça, um boné azul sujo de tinta branca e vermelha. Ainda com a mão em seu ombro, puxou um banco, apoiou-se nele para se sentar e disse, com um tom de voz baixo, apagado e, ao mesmo tempo, fino e meio estridente:
- Escuta: você não se incomoda se eu me sentar aqui, não é? Quanto mais longe da porta, melhor. Sabe como é: se algo der errado lá fora, os primeiros que se fodem são os da frente, não é?
- É...
- Você é novo aqui, não? Nunca o vi sentado aqui antes. E olha que freqüento esse bar desde que abriu. E os que vieram antes dele também.
- Já estive aqui antes, mas foi uma vez, só. Então: sim, sou novo, sim.
- Oras, seja bem-vindo, então. O meu nome é José Odécio Alves, mas todos me conhecem como Zé Preto. Não é um apelido muito comum para um negro chamado José, mas é o que temos para hoje, não é? – falou, rindo e pedindo ao dono do bar que lhe servisse aquela dose de sempre.
- Uma raiz amarga, Seu Zé? – perguntou, já trazendo o copo e a garrafa.
- Isso, Serginho... essa mesma, faz o favor.
Virou o copo, limpou a boca com a costa da mão e a garganta com uma pigarreada. Serginho ainda estava ali, com a garrafa na mão, como quem já sabia que outro pedido viria.
- Coloque mais uma, sim?
- Opa! Claro, Seu Zé... – atendeu, enchendo o copo, fechando a garrafa e voltando para o balcão de pedra. – Só beba devagar, seu Zé, senão essa porra fará o senhor viver mais uns 150 anos.
- Ô, que Deus te ouça! – acenou, tirando o boné e o colocando de volta.
Enquanto o homem bebia seu trago, Fil voltou para a mesma posição de antes, servindo-se de cerveja e esvaindo-se em pensamentos. Virou meio copo de uma vez, apoiou-se nos cotovelos e suspirou, abaixando a cabeça enquanto segurava os cabelos como se estivesse sustentando o peso dela. Um suporte para a mente cansada. Por alguns segundos, o som das risadas foi diminuindo, o barulho das tacadas na mesa de bilhar foram se abrandando, até o som do ventilador na parede de trás foi amenizado. Por alguns segundos, parecia que Fil estava num vácuo, apenas sentindo suas mãos segurando-lhe a cabeça pelos cabelos. Mas, logo em seguida, tudo voltou ao mesmo ritmo, com a mesma intensidade de antes.
- Essa faxina na cabeça às vezes é boa, não é? – perguntou Seu Zé, enquanto tirava um maço de cigarros do bolso da camisa verde que usava.
- E como é. Pena que nem sempre dá pra limpar pra valer. No máximo jogamos pra debaixo do tapete, como sempre – respondeu Fil, notando a dificuldade do homem em tirar o pacote do bolso furado.
- O certo é a gente deixar a sujeira do lado de fora e apenas limpar o tapete, não é? – respondeu, rindo, enquanto tirava o cigarro do maço e o batia contra o balcão para assentar o fumo. Acendeu-o, dando uma longa tragada, e jogou a fumaça de volta para o próprio cigarro, como se fosse um charuto.
Fil encheu novamente seu copo, virando a garrafa toda. Pediu outra e perguntou se Seu Zé gostaria de tomar um pouco. Respondeu que sim, virando o último gole da raiz amarga.
- Pode ser nesse mesmo copo, não precisa pegar um limpo, não – disse enquanto limpava o pigarro da garganta. – Vai misturar tudo aqui dentro mesmo, não é?
Fil sorriu e encheu o copo do homem. Enquanto isso, um violeiro entrou no boteco e foi recepcionado por todos. Parecia ser mais um da velha guarda do local. Deve ser gostoso chegar em um lugar assim, onde todos conhecem seu nome e sabem da sua vida, sem te julgar pela roupa que está vestindo ou o emprego que perdeu. Apenas se sentam e bebem acompanhados, suportando uns aos outros.
O violeiro tinha um bigode cheio, daqueles que lembrava os velhos marechais. Um cabelo grisalho, com um pouco de gel. Uma camisa que mal segurava o tamanho da barriga. Era realmente uma bela barriga, daquelas duras, redondas, que daria pra apoiar um copo ou mesmo o violão que trazia pendurado nas costas. Sentou-se em um dos bancos altos de madeira, o que fez sua calça descer um pouco e mostrar o famoso “cofrinho” atrás. O cara estava em casa, afinal.
- Escuta, Nenê: antes de qualquer coisa, canta aquela pra gente, vai? Só uma vez – gritou Serginho enquanto tirava a cerveja do violeiro do freezer. Já sabia qual marca ele tomava, nem precisava perguntar.
- Tá bom, mas antes me dá um golinho de pinga, vai? Só pra esquentar a garganta, sabe?
Servido da pinga, virou-se de lado, ainda sentado no banco alto de madeira, tirou o violão das costas, o apoiou na perna cruzada e começou a dedilhá-lo, buscando uma afinação qualquer. Tossiu forte duas ou três vezes e começou a cantar. Quando chegou o refrão da música, todos cantaram juntos:

Se um dia eu chorar
Ninguém vai saber por que
É meu modo de amar 
É meu jeito de querer
Ninguém vai fazer juízo 
Nem saber que estou sentindo
Tu verás o meu sorriso
entre lágrimas caindo”.

              Quando terminou, todos aplaudiram e sorriram, para logo em seguida voltarem ao silêncio de suas conversas particulares. O violeiro gargalhou, guardou o violão e começou a beber sua cerveja.
              - Esse é o hino do bar... Boa, Nenê! - gritou Serginho, voltando-se para a pia para lavar os copos sujos que lotavam a cuba.
Apesar de ser uma moda sertaneja – e Fil realmente não gostava de sertanejo –, sorriu ao ouvi-la e teve aquela leve constatação acolhedora de que todo mundo está no mundo se fodendo por alguém. Sempre há ressentimento amoroso em um vagabundo de bar. Sempre há ressentimento amoroso em qualquer ser que respire, seja ele bêbado ou não. Alguns rezam pra diminuir a dor; outros bebem pra esquecer a dor. A ressaca, em ambos casos, é uma merda.
- Você trabalha com o que, Fil? – perguntou Seu Zé.
- Pela minha cara e pelo meu jeito, só posso ser duas coisas: ou andarilho ou escritor de alguma coisa. Mas acho que as duas se fundem, então sou um escritor andarilho.
- E sobre o que você escreve?
- Tenho uma coluna de aconselhamento em um jornal semanal em uma cidade pequena aqui perto. Onde já se viu: um falido como eu tentando ajudar emocionalmente os outros... mas até que tem dado certo, viu?
- Mas que tipo de conselhos você dá? Pode ser que eu precise de um agora...
- Olha, basicamente são sempre mulheres com problemas emocionais muito graves. Ou que passaram por situações de extrema violência e abuso: estupro, agressão doméstica, pedofilia, casamentos onde não há respeito, zelo, carinho e amor... Essas coisas sempre mexeram demais comigo e tento ser útil ouvindo sem julgamento e sem dedo em riste. Apenas ouço o desabafo e tento ajudar. É o mínimo que podemos fazer: ouvi-las.
- Você é tipo um malvadão do bem, então...
- De certa forma. Mas isso sempre me derruba, sinto as dores em mim e não consigo dissipá-las. Por isso bebo. Pra esquecer um pouco de tudo o que vivo, sinto e assumo em mim.
- É a razão pela qual todos bebemos, não é? – se repetiu seu Zé.
- Claro. Mas diga: qual a sua dúvida? Talvez eu possa entender e dar uma opinião. Não é muito, mas é o que temos pra hoje... – sorriu Fil enquanto tomava outro gole.
- Pode parecer estranho, mas os ETs roubaram meu emprego!
Fil engoliu seco a cerveja, limpou o bigode e perguntou, cético:
- Como assim, os ETs roubaram seu emprego?
- É que eu trabalhava num apiário. Sabe o que é um apiário, não é? Claro que sabe. Então, de repente as abelhas começaram a sumir! E foi assim nos últimos cinco anos. Toda colméia que fazíamos, as abelhas sumiam sem deixar rastro. Algumas duravam mais, mas sempre metade ou mais da produção sumia em questão de semanas. Aí meu patrão cansou do prejuízo e fechou o local.
- Mas sumiam de morrer ou mudar pra outro lugar?
- Não: desapareciam sem deixar rastro. Quando uma abelha tá doente, ela se afasta da colméia e morre longe para não contaminá-la. E se fosse um “suicídio em massa”, saberíamos pois acharíamos todas em algum lugar mais distantes. Mas nem sinal de corpos.
- E por isso que acha que foram os ETs?
- Não está óbvio? Elas estão sendo seqüestradas pois os ETs querem polinizar seus planetas e dizimar o nosso. Sem as abelhas, não teremos mais frutas nem mais nada. Estaremos fodidos em poucos anos!
- Mas qual o conselho iria me pedir?
- O que faço com o mel que tenho em casa?
Ambos riram.

Já quase na hora de fechar, o bar estava praticamente vazio: luzes apagadas, restando apenas a que iluminava a parte da frente do estabelecimento, copos lavados, balcão enxugado, tacos de bilhar pendurados. Fil terminava sua última cerveja, acompanhado de Serginho, quando viu dois homens entrarem pela porta semi-fechada. Entraram em silêncio, de maneira quase assustadora. Os dois que estavam no balcão se entreolharam e bateu um medo. Sabe quando você sente uma vibração estranha em alguém e não sabe explicar o motivo, apenas sabe que sente algo? Então, foi assim.
- Vê duas pingas pra gente, parceiro? – disse o menos mal-encarado, se é que dá pra chamá-lo assim.
- Olha, já to fechando, mas dá pra servir duas doses ainda – respondeu Serginho, enquanto pegava os copos e garrafa.
Botou os copos no balcão e o barulho do vidro ecoou pelo ambiente vazio. Um pegou e virou a dose, enquanto o outro tirava a carteira do bolso e entregava uma nota para pagar pelas doses. Serginho pegou-a e se dirigiu ao fundo, para voltar com o troco. Escondia a féria do dia embaixo do fogão, na cozinha do bar. Tinha medo de andar por aí à noite com dinheiro no bolso. Preferia fazê-lo durante o dia, era mais seguro.
- Tô falando pra você, cara, um amigo me passou a fita: esse Bar da Lôra que os caras falam tem uma mulher lá que arma um esquema bem sigiloso mas que vale a pena – falava em voz baixa aquele que havia virado o copo de pinga.
- Mas não sei, viu? Porra: dá medo sair com ela assim. Vai que dá merda? – resmungou o outro antes de também virar sua dose.
- Vai por mim que vale a pena: eu já fui duas vezes e não tem coisa melhor pra você se sentir macho. Mas no caminho te conto como funciona melhor... – e dispersaram o assunto ao notarem que Serginho voltava com o troco. Agradeceram e saíram em silêncio.
Fil esperou Serginho fechar o bar e, já na rua, perguntou:
- Viu, onde fica esse Bar da Lôra? Você conhece?
- Até conheço, viu? Mas não vale a pena você ir lá, não. Só vai tranqueira, gente que a troco de bosta você perde a lata, ainda.
- Eu só quero tomar a saideira antes de ir pra casa - respondeu Fil, sorrindo pra disfarçar.
Serginho explicou onde era e desceu a rua, não sem antes virar-se pra FIl, que subia em sentido contrário, e convidá-lo para voltar mais vezes ao seu bar. Mas Fil já estava com a cabeça focada em outro lugar, em outro problema e nem ouviu o convite. Ele voltaria a freqüentar aquele bar várias vezes, porém agora queria saber o que rolava no tal Bar da Lôra.
              Pena que enquanto seguia o caminho indicado, lembrou-se que isso o afastaria demais de casa e que teria de voltar tudo aquilo à pé no meio da madrugada fria. Não que a madrugada o afugentasse, pelo contrário. Mas é que estava com quase nada de grana no bolso e estava realmente frio pra ficar na rua. Se tivesse pelo menos uma jaqueta pra aquecê-lo durante a caminhada, teria seguido com o plano inicial.

Parou, coçou a cabeça, suspirou fundo e voltou pelo mesmo caminho que seguia. Iria ficar acordado até o amanhecer, mas o faria aquecido em casa. Tem certas fases da vida em que tudo o que queremos é apenas um sofá pra deitar e coçar o saco esquecido.
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De príncipe a ogros, passando por lobos

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores: 0 comentários
Quantas histórias você leu onde um lobo era colocado como mau, aquele que chega destruindo lares, aterrorizando crianças e devorando inocentes entes queridos? E em quantas o príncipe encantado era aquele que chegava de cavalo branco para resgatar a pobre mocinha do calvário da história? E os ogros, que são sempre seres repugnantes, mal-educados e dignos de asco? Pois bem. Já parou pra pensar no motivo de tais personagens serem colocados dessa maneira? Qual o intuito dos autores em repassar esse mesmo arquétipo na tríade masculina dos contos infantis?

O lobo mau sempre é a ameaça ao lar. Aquele que chega como terceiro elemento e colocará em risco a estabilidade familiar. Mas o que não contam nos contos é que o lobo faz isso justamente para libertar a mulher da domesticação. Ele sente que a loba dentro dela está sendo ameaçada, tolhida e amordaçada.  Ela está cercada pelo medo, pela fragilidade e pela manipulação. Ele assopra, bate e invade para que ela consiga se desprender de suas correntes morais e aprender a correr livre, de fato. O lobo não quer sua companhia aprisionada, não impõe estacas delimitadoras. Irá trazer seu lado animal à tona, irá afundar em você e resgatá-la de você mesma. Ele não teme suas sombras, ele as conhece. E por conhecer, por não temer e por querer a liberdade, o lobo é mau para aqueles que não são bons. O lobo gera medo pois ele irá te dar coragem.

O ogro é sempre nojento e repugnante pois traz sempre a verdade em suas palavras. O repudiam e o renegam ao limbo do pântano pois não se permite ser apenas um rosto bonito para socialmente ser aceito pelos nobres da realeza. Ele não se guia pelos padrões morais vigentes, se permite ser feio quando se sente feio, sem ligar para os dedos apontados, recriminando sua feiúra. E vai entender quando a donzela precisar chorar sem motivo. Vai saber quando a tristeza se abater por ela também sem motivo. Porque o ogro conhece os motivos, sabe dos medos. O ogro não teme o medo: o convida para tomar uma cerveja e conhecer as razões de sua existência. O ogro é sincero sem te menosprezar, te rebaixar e te manipular. Ele quer sua voz sendo emitida sem medo, sabendo que será ouvida e compreendida. O ogro será asqueroso pois ele expõe as próprias mazelas sem medo da reprovação. Ele não precisa ser aceito pela sociedade: apenas quer ser aceito por você, como ele é!

E o príncipe? Bom, o príncipe é o idealizado, o provedor, o estável. É o mais aceito socialmente, é aquele que a mãe da donzela terá prazer em recebê-lo em seu casebre, pois o nobre garantirá o sustento de sua família. Mesmo que para isso ela ignore os efeitos colaterais dessa relação. O príncipe, ao menor sinal de fragilidade da donzela, se mandará do castelo em cruzadas por novas posses, novas terras. Não porque ele tem poucos bens materiais, mas é porque para ele apenas isso garante o bem-estar da donzela. E porque príncipes não sabem lidar com a densidade de uma mulher. Para ele, apenas basta a posse, o poder sobre ela. Mas não se importa em, de fato, possuí-la. Enquanto ela chora, gritando em silêncio por um colo e para ser vista, o príncipe encoxa uma súdita nos corredores do palácio. E ao voltar para o leito, cumprirá seu papel de homem, sem notar que sua donzela não está ali, apenas seu corpo.

Mas o principal: e a donzela? Por que nunca escutam o que ela realmente tem a dizer? Qual essa necessidade de impor o príncipe a ela, de impor a vida de realeza, cercada por ouro, terras e súditos? Qual a razão de não deixá-la correr pelos campos livres sem cercas, com um lobo ao seu lado e não à sua frente, acompanhando e não guiando? Qual motivo não pode se embriagar em tabernas, tendo ogros a tira-colo para carregar suas ânforas e seus pecados? A princesa é sempre manipulada pelos pais, pelos príncipes, é educada a temer os seres das sombras. Mas ao dormir, depois de ter sido feita mulher por seu príncipe, ela sempre é a última a dormir. E pensa e repensa e ressente. E olha pela janela, acompanha as trevas lá fora sendo iluminada pela lua. E imagina como estão o lobo e o ogro. E ao adormecer, escorre uma lágrima pois precisa do castelo, mas sua vontade era de estar correndo e se embriagando com aqueles seres do mau. Mas ela precisa dormir. Amanha o seu encantado irá exigir que ela esteja bem e feliz.

Pois assim precisam as histórias de fantasias: de finais felizes, com donzelas estabelecidas. E lobos e ogros povoando os sonhos e os pesadelos alheios, pelos mesmos motivos, mas com interpretações diferentes.

Quantos lobos você rejeitou por medo de, finalmente, se ver como você é?
Quantos ogros você deixou de olhar por não querer encarar sua própria verdade?
E quantos príncipes você aceitou apenas por padrões morais e sociais e familiares?


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Amor em tempos de pausa

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores: 1 comentários
Trançando as pernas,
rumava à própria sorte
um homem rouco a desafiar
as esquinas da morte
com seus berros à revelia
de quem caminha sem norte

- Como ousam dormir
sem perseguir
o que é o amor, miseráveis?
Tragam-me Helena
ou não mais me calarei!

Com braços armados
por punhos sangrados,
lutava ele contra o vento
desferindo golpes sem alvos
e gingando o corpo marcado
em direção aos carros estacionados
E as ruas vazias se enchiam aos poucos
por dezenas de acordados pelos berros
que de suas casas saiam atordoados

- Saiam todos e acordem
e vivam, covardes!
Devolvam-me Helena
e nunca mais aqui virei!

E as praças se enchiam
com suas pequenas lamúrias
mescladas com risos abafados
por choros contidos
em passos falsos

Muitos o questionavam:
- Mas o que está acontecendo?
- O que o faz gritar, homem?

Seguia gritando e bebendo
e chorando e vivendo
sem ter mapa indicando
a espera de alguém o esperando:
- A flecha me fora novamente lançada
A lança de novo atirada
Os ecos da dor voltaram
agora com novas marcas
Helena, por que, Helena?

Apontado por tantos que o viam,
bradava ele sem se importar
com o que falavam
ou sobre o que riam
Precisava apenas caminhar
e gritar e soltar:

-Acordem e abandonem suas felicidades,
miseráveis sem amor!
É tempo de perder e barganhar
À espera de colo, de magia, de amor!
Tragam-me de volta Helena!
Me devolvam a magia de Helena, porcos!

A multidão o perseguia
com açoites de rancor
Enquanto o cercavam
ouvia-se abafados
seus berros uivados:
- Hei de morrer
na certeza de um fato:
a vida me trouxe
muito mais que um fardo!
Por favor, não machuquem
mais Helena!

As dezenas viraram milhares;
as centenas, milhões
Todos a acoitá-lo com desprezo
Tantos a olha-lo com desdém:
- Cale-se, não precisamos disso!
Volte para seu mundo imperfeito
e se afogue nas próprias mágoas

Pedras atiradas o atingiam
mas não o machucavam mais
do que as farpas da saudade
Lixos e entulhos jogados
não o manchavam mais
do que um amor protelado
E ainda assim, ele seguia
Apesar disso, ele aguentava
as sentenças desferidas:
- Pagarás o preço, triste homem
Viverás sem, apenas a sofrer
Serás um mártir sem voz,
esquecido às margens do tempo

Abraços eram negados
e beijos indeferidos,
mas todo ali estavam
apenas a amaldiçoá-lo
ao ouvi-lo:
- Amei e amo
mais do que qualquer um
poderia ter um dia amado
Pelo amor dos deuses:
cadê minha Helena?

Ao final, uma rua sem saída
Atrás dele, uma horda acordada
Dentro de si, a vida pausada
de um amor em stand by

Ajoelhado, apenas suspirou:
- Não calar-me-ei ante vossas ignorâncias
Gritarei até ter de volta
o amor de quem um dia me amou

Fechou os olhos a esperar
os desfechos dos golpes
da vida a se esvair no ar
em seu último brado ofegante:
- Me arranquem de mim,
mas não me tirem mais Helena!

Mas somente uma mão
o atingiu na testa, tão suave
quanto o pouso de borboleta
em flor recém desabrochada

- Pronto, estou aqui, tenha calma
Alivie teu peito agora
E traga paz à tua alma
Preciso de ti,
mas não dessa forma

E a multidão desapareceu
E a rua virou leito
E ali ele deitou, adormecido
sentindo a dócil mão
que o acalentava:
- Helena... Helena!


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#ContosDoOgro: Frio demais para dormir no chão - II

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores: 0 comentários
(primeira parte aqui)

Aquela manhã não teve sol radiante nem canto de pássaros. Apenas um céu cinza e um frio que entrava por todas as frestas do carro. Não soube precisar o horário, mas era uma das primeiras horas da manhã. Os vidros estavam embaçados por causa da sua respiração lá dentro e não enxergava onde estava. Demorou para se lembrar do que tinha acontecido, apenas tentava subir o banco e colocar o pescoço no lugar – quem já dormiu em um carro sabe como é essa dor. Parecia até que a dor fazia um barulho estridente cada vez que ele se mexia.
Por ter despertado cedo demais, o humor estava bem desafinado. É. Fil dormia até o meio-dia quase todo dia. Mas dormia tarde. Sempre achou que a manhã revela sempre a estupidez humana disfarçada de otimismo ou frustração pelo início do dia. Sempre há muita expectativa – gerada ou quebrada – em um “bom dia” dito ou ouvido. E isso era algo que realmente Fil evitava. Por isso começava a dormir quando todo o resto começava a acordar.
- Ô, puta que me pariu sentada, é isso o que dá acordar cedo... – reclamou ao ouvir um barulho intermitente no vidro.
Parecia alguém batendo, quase que com um desespero em forma de socos. Sentou-se, ainda com dificuldades por causa das dores, ergueu o banco e abriu o vidro. Um homem com roupas bem velhas, olhar vago, segurando um saco plástico enorme nas costas. Deu um passo para trás, engoliu seco, botou o saco no chão, esfregou as mãos e disse:
- O senhor tem um minuto pra me ouvir?
            - Desde que seja um minuto mesmo, pode falar...
- Olha, eu só tô batendo aqui porque eu tenho um problema, uma doença. E eu estou exterminando essa doença da minha vida. Mas, como toda doença, preciso fazer isso aos poucos.
              Fil ainda estava preocupado em conseguir se ajeitar no carro, para que a dor doesse menos. Notou na calçada, ao lado do saco plástico, um cachorro com um ar bem de vagabundo, daqueles que acompanham andarilhos por toda a cidade. O cachorro olhou para ele e FIl sorriu. Talvez isso tenha o ajudado a continuar a ouvir o discurso.
- Então, eu tenho uma doença séria, que é a doença da bebida. Bom, meu corpo tem essa doença. E como toda doença, preciso de tratamento. Eu não tô mentido, tenho até a receita aqui comigo. Eu preciso tomar uma certa dose de cachaças por dia. Será que o senhor não poderia me ajudar?
              Sem olhar para a cara do cara, respondeu que não tinha nada e já estava subindo o vidro quando o homem voltou a insistir.
- Nem cinqüenta centavos pra me ajudar? Se eu fugir do tratamento, vou voltar pra essa vida de bebedeira. Eu poderia inventar que preciso de dinheiro pra passagem ou pra comprar remédio, mas estou sendo sincero com o senhor.
Era um ponto importante a ser ressaltado. Afinal, quantas pessoas assumem que pedem dinheiro para beber? É sempre para comprar remédio, para ajudar a família ou para voltar para casa. Pelo menos a sinceridade do homem fez com que Fil procurasse no carro as parcas moedas que tinha e as entregasse para o honesto andarilho. Toda sinceridade precisa ser recompensada.
- Muito obrigado, senhor! Que Deus te ajude – agradeceu, pegando sua sacola no chão e virando a esquina, contando as moedas. O cachorro seguiu atrás, sem olhar para trás. A rua ainda estava bem vazia para o horário.
- É... às vezes só precisamos de um trago pra começar o dia – pensou Fil ao pegar sua garrafa de conhaque vazia.

Ligou o carro e saiu. Ainda tinha que descobrir como conseguir dinheiro para pagar ao chaveiro para abrir a porra da porta do seu apartamento. Rodou a esmo por uns trinta minutos e lembrou que o tanque estava com pouca gasolina. Seria mais um problema ficar sem o carro. Parou em uma praça qualquer e tentaria resolver o resto a pé, mesmo. Não sabia onde estava, só sabia que tinha gente na rua. E onde tem gente, tem alguém precisando de algo. Sempre. 
Era um bairro suburbano, com pessoas simples saindo para trabalhar muito cedo. Vans lotadas cortavam a avenida principal, carros com 20 anos de existência, bicicletas e motos barulhentas subiam e desciam em um ritmo que duraria o dia todo. Ninguém o notava na calçada, pareciam muito preocupados com os problemas que teriam de enfrentar logo mais. Não eram tristes, não eram felizes, eram apenas indiferentes. Quando o seu próprio mundo está em chamas você não tem muito tempo para apagar as labaredas do mundo alheio. Cada um com seu incêndio, correndo atrás de algum balde cheio.
O sol começou a ficar mais presente, enchendo a avenida com um clarão que doía a vista. Lembrou dos óculos escuros no porta-luvas do carro e se arrependeu de não pegá-los. Dificilmente FIl saía durante o dia sem eles. Era como se o sol o machucasse cada vez que o tocava. Sua luz machucava a pele e os olhos, castigando como se fosse arreio escaldante. Por não conseguir tolerar mais a clareza do dia, enfiou-se no primeiro ambiente escuro que encontrou: uma igreja pequena, com a pintura já descascada e tijolos aparentes. Estava paralela à avenida e quase ninguém mais notava sua existência naquele local. Era como se o mundo progredisse em volta e a igreja permaneceu no século passado.
As portas principais se abriram com dificuldade. Feitas em madeira pesada e antiga, parecia que há muito tempo não eram totalmente abertas. Ao entrar, notou um silêncio perturbador. O mundo lá fora havia sumido: a avenida com suas motos barulhentas e suas vans cheias se silenciaram. As pessoas não mais conversavam nos pontos de ônibus nem fofocavam encostadas aos portões de suas casas. Os mais religiosos poderiam dizer que seria a presença de Deus ali, mas Fil não acreditava nessas balelas de religião e logo deduziu que as paredes antigas e largas abafaram o som. Era como se fosse uma fortaleza, onde nem a luz do sol, quase à pino, se atrevia a atravessar qualquer fresta existente.  O altar estava escuro, mas revelava algumas imagens sacras penduradas. Antigas, com um aspecto bem peculiar. O teto não se via, mas era fácil notar que não estava tão alto. Nem mesmo o sino acima do altar era facilmente visto.
Sentou-se em um banco empoeirado e frio. Era desconfortável ficar ali, já que para ele Deus ou religião eram apenas obras de ficção. Quem o visse sentado daquela forma até poderia pensar que estava aflito em busca de resposta, mas o que precisava mesmo era de um trago e de um pouco de dinheiro.
Foi quando notou uma cortina ao fundo se abrir, revelando uma sala dividida por um biombo vazado. Parecia um confessionário, mas diferente daqueles que retratam em filmes. Um casal saiu sorrindo baixo, trocando pequenas falas e toques sutis por cima da cintura. A mulher era formosa, até: tinha seus 50 anos, belas pernas reveladas sob uma saia larga que cobria as coxas até o joelho, uma blusa fina de algodão branca e cabelos presos de qualquer forma. Já o homem vestia calça social, camisa preta de mangas curtas e um cabelo molhado em gel. As risadas, mesmo contidas, ecoavam no salão e ambos nem demonstravam preocupação com isso. Havia muita intimidade no andar deles. Fil sorriu e pensou que aquele confessionário foi palco de alguma confissão a dois, daquelas que só as paredes são testemunhas.
Ao passarem pelos bancos centrais, ainda rindo, notaram a presença daquele estranho sentado onde ninguém mais sentava. Pararam na hora e as expressões mudaram. Mesclavam preocupação e vergonha. Ela se despediu timidamente, arrumando o cabelo e a blusa e seguiu para uma porta lateral, que abriu com a facilidade de quem era costumeiramente usada, diferente da porta principal. Ao abri-la, a luz do sol que entrou revelou na mulher um sorriso seco e um olhar perdido. Parecia que não queria voltar para a vida fora daquele recinto.
O homem caminhou na direção de Fil, sentou-se ao seu lado e suspirou.
- Foi o marido dela quem te mandou, não é?
- Pode ser que sim, pode ser que não. O marido tem motivos pra mandar alguém atrás dela? – perguntou em tom sério e firme, sem olhar para o homem.
Ele sentou-se mais encostado ao banco, deslizando o corpo e cruzando os braços. Um deles apoiou a cabeça quando ela se abaixou, em tom desolado, com a mão cobrindo o rosto. Ficou em silêncio por um minuto e suspirou novamente, mais profundamente.
- Quanto você quer pra calar a boca e sumir daqui?
- Depende: quanto você está disposto a pagar pelo meu silêncio? – respondeu em tom ameaçador. O homem então virou-se para Fil e gritou:
- Escuta aqui: ninguém vai acreditar na sua história. Sou o padre desta paróquia e ninguém vem aqui há anos. Talvez nem se lembrem que eu exista, talvez nem se lembrem que esta igreja exista. E você não está com cara de quem viu algo que me comprometa ou que prejudique aquela senhora.
- O senhor não tem como saber disso, padre...
 - Ficamos 20 minutos conversando, apenas isso. Não há nada de mais em duas pessoas conversando, há? Me responda: há? – perguntava desesperado, tentando disfarçar com um sorriso irônico nos lábios.
- O senhor não sabe há quanto tempo estou aqui, nem quem sou e nem o que ouvi saindo lá de dentro. Mas, se não há nada de mais, não tem problema se eu sair por aquela porta, não é, padre? E me faça um favor: suba o zíper de sua calça, sim?
Fil levantou-se, então, saiu pelo lado contrário do banco e seguia rumo à porta. Caminhava lentamente, com um ar de quem levava consigo um segredo. Foi quando o padre disse, em tom amargurado:
- Espere! Sente-se e me aguarde um minuto, sim?
Parou de andar e apenas aguardou, sem olhar pra trás. Ouviu passos apressados se afastando. Logo em seguida, uma porta bateu e os passos voltaram em direção ao centro da igreja. Fil virou-se e viu o homem caminhando com um envelope nas mãos. Caminhava rapidamente e quase sem compasso. Estava assustado, talvez.
- Olhe, o que tenho aqui é isso. Não pode esquecer nossa conversa e esquecer esta esquecida igreja? – sorriu timidamente o homem.
- Que conversa, padre? Que conversa? – respondeu pegando o envelope e saindo sem pressa.
Ao chegar à porta lateral, a abriu relevando o dia ainda muito claro e a luz logo o cegou. Virou-se, então, para o padre que, desolado, aguardava sua saída. Enfiou o envelope no bolso e perguntou:
- Padre, por um acaso o senhor não tem vinho aí, tem?
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