Passada uma semana desde sua conversa com a vizinha de baixo,
Fil notou que a costumeira gritaria não existia mais. Tampouco via Ludmila
brincando pela garagem. Foram dias silenciosos e olha que ele praticamente não
saiu do apartamento. Ficou três dias sem olhar para a rua, sem botar o corpo
pra fora da porta, sem tomar banho, sem sobreviver. Apenas respirou. Estava
cansado, a mente padecia e o peito enrijecia. Pensava em tudo e concluía nada.
Aquilo já estava ficando chato demais, até mesmo pra ele.
Ainda tinha alguns trocados guardados no envelope e resolveu
sair, procurar algum bar para afogar as mágoas. O problema é que as mágoas
aprenderam a nadar; agora ele as ensinava a beber. E bebiam mais do que ele.
Botou um tênis velho e sem cadarço, pegou os óculos escuros
companheiros de duas décadas e saiu. A chave deslizava ao trancar a fechadura.
Lembrou-se de um boteco que ficava distante apenas algumas quadras de sua casa.
Chegou a freqüentar algum tempo aquele local pois o dono era pai de um
conhecido. Botecos bem freqüentados e com cara de boteco eram raros: ou se transformavam
em “barzinho” para a molecada ou virava reduto de pessoas com caráter
questionável, quase como se fosse uma assembleia do lixo social. Um lixo
não-reciclável, por sinal.
Ao passar em frente ao apartamento de Ludmila, não consegui
evitar: tentou olhar pelas frestas da porta, buscando algum sinal de vida. Era
muito estranho aquele silêncio, ainda mais vindo daquele lugar. Não ouviu
passos, vozes, sequer o ranger de móveis, nem sentiu o vento passando por baixo
da porta. Realmente estava estranho, mas como estava com sede, logo saiu.
Como estava no final da tarde, resolveu andar. Caminhou por
vinte minutos e logo chegou ao boteco. Era simples, com portões de ferro vazado
pintado de branco, paredes amarelas descascadas pelos anos sem pintura, um sujo
toldo azul cobria as duas portas que se abriam pra cima, sempre promovendo um
forte barulho de aço se dobrando. Era um bar comprido, com uma mesa de bilhar
no canto direito, o balcão do lado esquerdo se estendendo até o fundo. Algumas
mesas, pôsteres de propaganda de várias bebidas, alguns novos, alguns antigos.
Era grande o ambiente, com teto alto e uma velha TV ao lado da porta principal.
O dono, um botequeiro de 50 anos, estava ali há 20. Um tipo alemão, com bigode
espesso e longo, cabelo fino e loiro e curto, aparado em máquina, com cara
amarrada mas bem receptivo.
Cerca de meia dúzia de clientes sentavam-se ao balcão ou às
poucas mesas espalhadas. Fil poderia passar dias ali dentro, apenas bebendo e
jogando conversa fora. Pediu uma cerveja e o dono, ao servi-la, perguntou:
- Você já esteve aqui antes, não?
- Já estive, sim... mas foi há alguns anos.
- Eu me lembro: você é o Monteiro, colega do meu filho. Lembro
que você odiava seu nome. Qual era seu apelido mesmo? Mir? Tim?
- Não, meu nome é Lobato. Mas me chame de FIl... apenas Fil
- respondeu, resignado. Realmente não
gostava do seu nome.
- É... você é moleque demais pra se chamar Lobato. Lembra nome
de velho, não é? – respondeu o homem, perguntando de volta e limpando as mãos
num guardanapo de pano que estava pendurado ao lado da pia.
- É... e você se chama como, mesmo?
- Sérgio. Mas todo mundo conhece aqui como Bar do Serginho.
Aliás: bar, não; isso aqui é uma comunidade! É ou não é? – perguntou, batendo
no balcão, aos que estavam ali encostados.
-É, Serginho... é – responderam como quem respondem
repetidamente à mesma pergunta.
Recolheu as moedas que Fil jogou para pagar a cerveja, abriu uma
gaveta embaixo do balcão de madeira, jogou-as dentro e voltou a se sentar no
começo do balcão de pedra. Sim, tinha dois balcões, um encostado ao outro.
Peculiar, do jeito que um boteco precisa ser. Tinha também dois freezers, um
deles estava desligado e servia apenas como suporte para os jornais do dia e um
rádio velho. Fil pediu para dar uma folheada nos jornais e Serginho respondeu:
- Dá a volta e pega! Tá mais perto de você do que de mim,
caralho!
Não poderia haver ambiente mais aconchegante do que aquele.
Depois de olhar pelas páginas dos diários sem muito interesse, devolveu-os e
pediu mais uma cerveja. Sentado naquele banco alto de madeira, com os dois
cotovelos apoiados no balcão (o de madeira), olhando para a parede de azulejo
marrom, apenas bebia sem buscar nada de inspiração. Apenas tentava entender o
que aconteceu com Ludmila. Nunca esqueceu aquele olhar de medo, aqueles gritos
e aquele despertar preocupado provocado por aquela menina. Algo estava errado,
não era pra ser assim.
Enquanto enchia novamente seu copo, sentiu uma mão encostar em
seu ombro. Virou a cabeça para o lado e viu um velho de barba branca e preta,
cabelos brancos e pele preta. Tinha um olhar meigo e um sorriso cansado,
envolto por uma pele castigada pelo tempo. Na cabeça, um boné azul sujo de
tinta branca e vermelha. Ainda com a mão em seu ombro, puxou um banco,
apoiou-se nele para se sentar e disse, com um tom de voz baixo, apagado e, ao
mesmo tempo, fino e meio estridente:
- Escuta: você não se incomoda se eu me sentar aqui, não é?
Quanto mais longe da porta, melhor. Sabe como é: se algo der errado lá fora, os
primeiros que se fodem são os da frente, não é?
- É...
- Você é novo aqui, não? Nunca o vi sentado aqui antes. E olha
que freqüento esse bar desde que abriu. E os que vieram antes dele também.
- Já estive aqui antes, mas foi uma vez, só. Então: sim, sou
novo, sim.
- Oras, seja bem-vindo, então. O meu nome é José Odécio Alves,
mas todos me conhecem como Zé Preto. Não é um apelido muito comum para um negro
chamado José, mas é o que temos para hoje, não é? – falou, rindo e pedindo ao
dono do bar que lhe servisse aquela dose de sempre.
- Uma raiz amarga, Seu Zé? – perguntou, já trazendo o copo e a
garrafa.
- Isso, Serginho... essa mesma, faz o favor.
Virou o copo, limpou a boca com a costa da mão e a garganta com
uma pigarreada. Serginho ainda estava ali, com a garrafa na mão, como quem já
sabia que outro pedido viria.
- Coloque mais uma, sim?
- Opa! Claro, Seu Zé... – atendeu, enchendo o copo, fechando a
garrafa e voltando para o balcão de pedra. – Só beba devagar, seu Zé, senão
essa porra fará o senhor viver mais uns 150 anos.
- Ô, que Deus te ouça! – acenou, tirando o boné e o colocando de
volta.
Enquanto o homem bebia seu trago, Fil voltou para a mesma
posição de antes, servindo-se de cerveja e esvaindo-se em pensamentos. Virou
meio copo de uma vez, apoiou-se nos cotovelos e suspirou, abaixando a cabeça
enquanto segurava os cabelos como se estivesse sustentando o peso dela. Um
suporte para a mente cansada. Por alguns segundos, o som das risadas foi
diminuindo, o barulho das tacadas na mesa de bilhar foram se abrandando, até o
som do ventilador na parede de trás foi amenizado. Por alguns segundos, parecia
que Fil estava num vácuo, apenas sentindo suas mãos segurando-lhe a cabeça
pelos cabelos. Mas, logo em seguida, tudo voltou ao mesmo ritmo, com a mesma
intensidade de antes.
- Essa faxina na cabeça às vezes é boa, não é? – perguntou Seu
Zé, enquanto tirava um maço de cigarros do bolso da camisa verde que usava.
- E como é. Pena que nem sempre dá pra limpar pra valer. No
máximo jogamos pra debaixo do tapete, como sempre – respondeu Fil, notando a
dificuldade do homem em tirar o pacote do bolso furado.
- O certo é a gente deixar a sujeira do lado de fora e apenas
limpar o tapete, não é? – respondeu, rindo, enquanto tirava o cigarro do maço e
o batia contra o balcão para assentar o fumo. Acendeu-o, dando uma longa
tragada, e jogou a fumaça de volta para o próprio cigarro, como se fosse um
charuto.
Fil encheu novamente seu copo, virando a garrafa toda. Pediu
outra e perguntou se Seu Zé gostaria de tomar um pouco. Respondeu que sim,
virando o último gole da raiz amarga.
- Pode ser nesse mesmo copo, não precisa pegar um limpo, não –
disse enquanto limpava o pigarro da garganta. – Vai misturar tudo aqui dentro
mesmo, não é?
Fil sorriu e encheu o copo do homem. Enquanto isso, um violeiro
entrou no boteco e foi recepcionado por todos. Parecia ser mais um da velha
guarda do local. Deve ser gostoso chegar em um lugar assim, onde todos conhecem
seu nome e sabem da sua vida, sem te julgar pela roupa que está vestindo ou o
emprego que perdeu. Apenas se sentam e bebem acompanhados, suportando uns aos
outros.
O violeiro tinha um bigode cheio, daqueles que lembrava os
velhos marechais. Um cabelo grisalho, com um pouco de gel. Uma camisa que mal
segurava o tamanho da barriga. Era realmente uma bela barriga, daquelas duras,
redondas, que daria pra apoiar um copo ou mesmo o violão que trazia pendurado
nas costas. Sentou-se em um dos bancos altos de madeira, o que fez sua calça
descer um pouco e mostrar o famoso “cofrinho” atrás. O cara estava em casa, afinal.
- Escuta, Nenê: antes de qualquer coisa, canta aquela pra gente,
vai? Só uma vez – gritou Serginho enquanto tirava a cerveja do violeiro do
freezer. Já sabia qual marca ele tomava, nem precisava perguntar.
- Tá bom, mas antes me dá um golinho de pinga, vai? Só pra
esquentar a garganta, sabe?
Servido da pinga, virou-se de lado, ainda sentado no banco alto
de madeira, tirou o violão das costas, o apoiou na perna cruzada e começou a
dedilhá-lo, buscando uma afinação qualquer. Tossiu forte duas ou três vezes e
começou a cantar. Quando chegou o refrão da música, todos cantaram juntos:
“Se um dia eu chorar
Ninguém vai saber por que
É meu modo de amar
É meu jeito de querer
Ninguém vai fazer juízo
Nem saber que estou sentindo
Tu verás o meu sorriso
Ninguém vai saber por que
É meu modo de amar
É meu jeito de querer
Ninguém vai fazer juízo
Nem saber que estou sentindo
Tu verás o meu sorriso
entre lágrimas caindo”.
Quando terminou, todos aplaudiram
e sorriram, para logo em seguida voltarem ao silêncio de suas conversas
particulares. O violeiro gargalhou, guardou o violão e começou a beber sua
cerveja.
- Esse é o hino do bar... Boa,
Nenê! - gritou Serginho, voltando-se para a pia para lavar os copos sujos que
lotavam a cuba.
Apesar de ser uma moda sertaneja – e Fil realmente não gostava
de sertanejo –, sorriu ao ouvi-la e teve aquela leve constatação acolhedora de
que todo mundo está no mundo se fodendo por alguém. Sempre há ressentimento
amoroso em um vagabundo de bar. Sempre há ressentimento amoroso em qualquer ser
que respire, seja ele bêbado ou não. Alguns rezam pra diminuir a dor; outros
bebem pra esquecer a dor. A ressaca, em ambos casos, é uma merda.
- Você trabalha com o que, Fil? – perguntou Seu Zé.
- Pela minha cara e pelo meu jeito, só posso ser duas coisas: ou
andarilho ou escritor de alguma coisa. Mas acho que as duas se fundem, então
sou um escritor andarilho.
- E sobre o que você escreve?
- Tenho uma coluna de aconselhamento em um jornal semanal em uma
cidade pequena aqui perto. Onde já se viu: um falido como eu tentando ajudar
emocionalmente os outros... mas até que tem dado certo, viu?
- Mas que tipo de conselhos você dá? Pode ser que eu precise de
um agora...
- Olha, basicamente são sempre mulheres com problemas emocionais
muito graves. Ou que passaram por situações de extrema violência e abuso:
estupro, agressão doméstica, pedofilia, casamentos onde não há respeito, zelo,
carinho e amor... Essas coisas sempre mexeram demais comigo e tento ser útil
ouvindo sem julgamento e sem dedo em riste. Apenas ouço o desabafo e tento
ajudar. É o mínimo que podemos fazer: ouvi-las.
- Você é tipo um malvadão do bem, então...
- De certa forma. Mas isso sempre me derruba, sinto as dores em
mim e não consigo dissipá-las. Por isso bebo. Pra esquecer um pouco de tudo o
que vivo, sinto e assumo em mim.
- É a razão pela qual todos bebemos, não é? – se repetiu seu Zé.
- Claro. Mas diga: qual a sua dúvida? Talvez eu possa entender e
dar uma opinião. Não é muito, mas é o que temos pra hoje... – sorriu Fil
enquanto tomava outro gole.
- Pode parecer estranho, mas os ETs roubaram meu emprego!
Fil engoliu seco a cerveja, limpou o bigode e perguntou, cético:
- Como assim, os ETs roubaram seu emprego?
- É que eu trabalhava num apiário. Sabe o que é um apiário, não
é? Claro que sabe. Então, de repente as abelhas começaram a sumir! E foi assim
nos últimos cinco anos. Toda colméia que fazíamos, as abelhas sumiam sem deixar
rastro. Algumas duravam mais, mas sempre metade ou mais da produção sumia em
questão de semanas. Aí meu patrão cansou do prejuízo e fechou o local.
- Mas sumiam de morrer ou mudar pra outro lugar?
- Não: desapareciam sem deixar rastro. Quando uma abelha tá
doente, ela se afasta da colméia e morre longe para não contaminá-la. E se
fosse um “suicídio em massa”, saberíamos pois acharíamos todas em algum lugar
mais distantes. Mas nem sinal de corpos.
- E por isso que acha que foram os ETs?
- Não está óbvio? Elas estão sendo seqüestradas pois os ETs
querem polinizar seus planetas e dizimar o nosso. Sem as abelhas, não teremos
mais frutas nem mais nada. Estaremos fodidos em poucos anos!
- Mas qual o conselho iria me pedir?
- O que faço com o mel que tenho em casa?
Ambos riram.
Já quase na hora de fechar, o bar estava praticamente vazio:
luzes apagadas, restando apenas a que iluminava a parte da frente do
estabelecimento, copos lavados, balcão enxugado, tacos de bilhar pendurados.
Fil terminava sua última cerveja, acompanhado de Serginho, quando viu dois
homens entrarem pela porta semi-fechada. Entraram em silêncio, de maneira quase
assustadora. Os dois que estavam no balcão se entreolharam e bateu um medo.
Sabe quando você sente uma vibração estranha em alguém e não sabe explicar o motivo,
apenas sabe que sente algo? Então, foi assim.
- Vê duas pingas pra gente, parceiro? – disse o menos
mal-encarado, se é que dá pra chamá-lo assim.
- Olha, já to fechando, mas dá pra servir duas doses ainda –
respondeu Serginho, enquanto pegava os copos e garrafa.
Botou os copos no balcão e o barulho do vidro ecoou pelo
ambiente vazio. Um pegou e virou a dose, enquanto o outro tirava a carteira do
bolso e entregava uma nota para pagar pelas doses. Serginho pegou-a e se
dirigiu ao fundo, para voltar com o troco. Escondia a féria do dia embaixo do
fogão, na cozinha do bar. Tinha medo de andar por aí à noite com dinheiro no
bolso. Preferia fazê-lo durante o dia, era mais seguro.
- Tô falando pra você, cara, um amigo me passou a fita: esse Bar
da Lôra que os caras falam tem uma mulher lá que arma um esquema bem sigiloso
mas que vale a pena – falava em voz baixa aquele que havia virado o copo de
pinga.
- Mas não sei, viu? Porra: dá medo sair com ela assim. Vai que
dá merda? – resmungou o outro antes de também virar sua dose.
- Vai por mim que vale a pena: eu já fui duas vezes e não tem
coisa melhor pra você se sentir macho.
Mas no caminho te conto como funciona melhor... – e dispersaram o assunto ao
notarem que Serginho voltava com o troco. Agradeceram e saíram em silêncio.
Fil esperou Serginho fechar o bar e, já na rua, perguntou:
- Viu, onde fica esse Bar da Lôra? Você conhece?
- Até conheço, viu? Mas não vale a pena você ir lá, não. Só vai
tranqueira, gente que a troco de bosta você perde a lata, ainda.
- Eu só quero tomar a saideira antes de ir pra casa - respondeu
Fil, sorrindo pra disfarçar.
Serginho explicou onde era e desceu a rua, não sem antes
virar-se pra FIl, que subia em sentido contrário, e convidá-lo para voltar mais
vezes ao seu bar. Mas Fil já estava com a cabeça focada em outro lugar, em
outro problema e nem ouviu o convite. Ele voltaria a freqüentar aquele bar
várias vezes, porém agora queria saber o que rolava no tal Bar da Lôra.
Pena que enquanto seguia o caminho
indicado, lembrou-se que isso o afastaria demais de casa e que teria de voltar
tudo aquilo à pé no meio da madrugada fria. Não que a madrugada o afugentasse,
pelo contrário. Mas é que estava com quase nada de grana no bolso e estava
realmente frio pra ficar na rua. Se tivesse pelo menos uma jaqueta pra aquecê-lo
durante a caminhada, teria seguido com o plano inicial.
Parou, coçou a cabeça, suspirou fundo e voltou pelo mesmo
caminho que seguia. Iria ficar acordado até o amanhecer, mas o faria aquecido
em casa. Tem certas fases da vida em que tudo o que queremos é apenas um sofá
pra deitar e coçar o saco esquecido.
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