#ContosDoOgro: Os ETs roubaram meu emprego!

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
Passada uma semana desde sua conversa com a vizinha de baixo, Fil notou que a costumeira gritaria não existia mais. Tampouco via Ludmila brincando pela garagem. Foram dias silenciosos e olha que ele praticamente não saiu do apartamento. Ficou três dias sem olhar para a rua, sem botar o corpo pra fora da porta, sem tomar banho, sem sobreviver. Apenas respirou. Estava cansado, a mente padecia e o peito enrijecia. Pensava em tudo e concluía nada. Aquilo já estava ficando chato demais, até mesmo pra ele.
Ainda tinha alguns trocados guardados no envelope e resolveu sair, procurar algum bar para afogar as mágoas. O problema é que as mágoas aprenderam a nadar; agora ele as ensinava a beber. E bebiam mais do que ele.
Botou um tênis velho e sem cadarço, pegou os óculos escuros companheiros de duas décadas e saiu. A chave deslizava ao trancar a fechadura. Lembrou-se de um boteco que ficava distante apenas algumas quadras de sua casa. Chegou a freqüentar algum tempo aquele local pois o dono era pai de um conhecido. Botecos bem freqüentados e com cara de boteco eram raros: ou se transformavam em “barzinho” para a molecada ou virava reduto de pessoas com caráter questionável, quase como se fosse uma assembleia do lixo social. Um lixo não-reciclável, por sinal.
Ao passar em frente ao apartamento de Ludmila, não consegui evitar: tentou olhar pelas frestas da porta, buscando algum sinal de vida. Era muito estranho aquele silêncio, ainda mais vindo daquele lugar. Não ouviu passos, vozes, sequer o ranger de móveis, nem sentiu o vento passando por baixo da porta. Realmente estava estranho, mas como estava com sede, logo saiu.
Como estava no final da tarde, resolveu andar. Caminhou por vinte minutos e logo chegou ao boteco. Era simples, com portões de ferro vazado pintado de branco, paredes amarelas descascadas pelos anos sem pintura, um sujo toldo azul cobria as duas portas que se abriam pra cima, sempre promovendo um forte barulho de aço se dobrando. Era um bar comprido, com uma mesa de bilhar no canto direito, o balcão do lado esquerdo se estendendo até o fundo. Algumas mesas, pôsteres de propaganda de várias bebidas, alguns novos, alguns antigos. Era grande o ambiente, com teto alto e uma velha TV ao lado da porta principal. O dono, um botequeiro de 50 anos, estava ali há 20. Um tipo alemão, com bigode espesso e longo, cabelo fino e loiro e curto, aparado em máquina, com cara amarrada mas bem receptivo.
Cerca de meia dúzia de clientes sentavam-se ao balcão ou às poucas mesas espalhadas. Fil poderia passar dias ali dentro, apenas bebendo e jogando conversa fora. Pediu uma cerveja e o dono, ao servi-la, perguntou:
- Você já esteve aqui antes, não?
- Já estive, sim... mas foi há alguns anos.
- Eu me lembro: você é o Monteiro, colega do meu filho. Lembro que você odiava seu nome. Qual era seu apelido mesmo? Mir? Tim?
- Não, meu nome é Lobato. Mas me chame de FIl... apenas Fil -  respondeu, resignado. Realmente não gostava do seu nome.
- É... você é moleque demais pra se chamar Lobato. Lembra nome de velho, não é? – respondeu o homem, perguntando de volta e limpando as mãos num guardanapo de pano que estava pendurado ao lado da pia.
- É... e você se chama como, mesmo?
- Sérgio. Mas todo mundo conhece aqui como Bar do Serginho. Aliás: bar, não; isso aqui é uma comunidade! É ou não é? – perguntou, batendo no balcão, aos que estavam ali encostados.
-É, Serginho... é – responderam como quem respondem repetidamente à mesma pergunta.
Recolheu as moedas que Fil jogou para pagar a cerveja, abriu uma gaveta embaixo do balcão de madeira, jogou-as dentro e voltou a se sentar no começo do balcão de pedra. Sim, tinha dois balcões, um encostado ao outro. Peculiar, do jeito que um boteco precisa ser. Tinha também dois freezers, um deles estava desligado e servia apenas como suporte para os jornais do dia e um rádio velho. Fil pediu para dar uma folheada nos jornais e Serginho respondeu:
- Dá a volta e pega! Tá mais perto de você do que de mim, caralho!
Não poderia haver ambiente mais aconchegante do que aquele. Depois de olhar pelas páginas dos diários sem muito interesse, devolveu-os e pediu mais uma cerveja. Sentado naquele banco alto de madeira, com os dois cotovelos apoiados no balcão (o de madeira), olhando para a parede de azulejo marrom, apenas bebia sem buscar nada de inspiração. Apenas tentava entender o que aconteceu com Ludmila. Nunca esqueceu aquele olhar de medo, aqueles gritos e aquele despertar preocupado provocado por aquela menina. Algo estava errado, não era pra ser assim.
Enquanto enchia novamente seu copo, sentiu uma mão encostar em seu ombro. Virou a cabeça para o lado e viu um velho de barba branca e preta, cabelos brancos e pele preta. Tinha um olhar meigo e um sorriso cansado, envolto por uma pele castigada pelo tempo. Na cabeça, um boné azul sujo de tinta branca e vermelha. Ainda com a mão em seu ombro, puxou um banco, apoiou-se nele para se sentar e disse, com um tom de voz baixo, apagado e, ao mesmo tempo, fino e meio estridente:
- Escuta: você não se incomoda se eu me sentar aqui, não é? Quanto mais longe da porta, melhor. Sabe como é: se algo der errado lá fora, os primeiros que se fodem são os da frente, não é?
- É...
- Você é novo aqui, não? Nunca o vi sentado aqui antes. E olha que freqüento esse bar desde que abriu. E os que vieram antes dele também.
- Já estive aqui antes, mas foi uma vez, só. Então: sim, sou novo, sim.
- Oras, seja bem-vindo, então. O meu nome é José Odécio Alves, mas todos me conhecem como Zé Preto. Não é um apelido muito comum para um negro chamado José, mas é o que temos para hoje, não é? – falou, rindo e pedindo ao dono do bar que lhe servisse aquela dose de sempre.
- Uma raiz amarga, Seu Zé? – perguntou, já trazendo o copo e a garrafa.
- Isso, Serginho... essa mesma, faz o favor.
Virou o copo, limpou a boca com a costa da mão e a garganta com uma pigarreada. Serginho ainda estava ali, com a garrafa na mão, como quem já sabia que outro pedido viria.
- Coloque mais uma, sim?
- Opa! Claro, Seu Zé... – atendeu, enchendo o copo, fechando a garrafa e voltando para o balcão de pedra. – Só beba devagar, seu Zé, senão essa porra fará o senhor viver mais uns 150 anos.
- Ô, que Deus te ouça! – acenou, tirando o boné e o colocando de volta.
Enquanto o homem bebia seu trago, Fil voltou para a mesma posição de antes, servindo-se de cerveja e esvaindo-se em pensamentos. Virou meio copo de uma vez, apoiou-se nos cotovelos e suspirou, abaixando a cabeça enquanto segurava os cabelos como se estivesse sustentando o peso dela. Um suporte para a mente cansada. Por alguns segundos, o som das risadas foi diminuindo, o barulho das tacadas na mesa de bilhar foram se abrandando, até o som do ventilador na parede de trás foi amenizado. Por alguns segundos, parecia que Fil estava num vácuo, apenas sentindo suas mãos segurando-lhe a cabeça pelos cabelos. Mas, logo em seguida, tudo voltou ao mesmo ritmo, com a mesma intensidade de antes.
- Essa faxina na cabeça às vezes é boa, não é? – perguntou Seu Zé, enquanto tirava um maço de cigarros do bolso da camisa verde que usava.
- E como é. Pena que nem sempre dá pra limpar pra valer. No máximo jogamos pra debaixo do tapete, como sempre – respondeu Fil, notando a dificuldade do homem em tirar o pacote do bolso furado.
- O certo é a gente deixar a sujeira do lado de fora e apenas limpar o tapete, não é? – respondeu, rindo, enquanto tirava o cigarro do maço e o batia contra o balcão para assentar o fumo. Acendeu-o, dando uma longa tragada, e jogou a fumaça de volta para o próprio cigarro, como se fosse um charuto.
Fil encheu novamente seu copo, virando a garrafa toda. Pediu outra e perguntou se Seu Zé gostaria de tomar um pouco. Respondeu que sim, virando o último gole da raiz amarga.
- Pode ser nesse mesmo copo, não precisa pegar um limpo, não – disse enquanto limpava o pigarro da garganta. – Vai misturar tudo aqui dentro mesmo, não é?
Fil sorriu e encheu o copo do homem. Enquanto isso, um violeiro entrou no boteco e foi recepcionado por todos. Parecia ser mais um da velha guarda do local. Deve ser gostoso chegar em um lugar assim, onde todos conhecem seu nome e sabem da sua vida, sem te julgar pela roupa que está vestindo ou o emprego que perdeu. Apenas se sentam e bebem acompanhados, suportando uns aos outros.
O violeiro tinha um bigode cheio, daqueles que lembrava os velhos marechais. Um cabelo grisalho, com um pouco de gel. Uma camisa que mal segurava o tamanho da barriga. Era realmente uma bela barriga, daquelas duras, redondas, que daria pra apoiar um copo ou mesmo o violão que trazia pendurado nas costas. Sentou-se em um dos bancos altos de madeira, o que fez sua calça descer um pouco e mostrar o famoso “cofrinho” atrás. O cara estava em casa, afinal.
- Escuta, Nenê: antes de qualquer coisa, canta aquela pra gente, vai? Só uma vez – gritou Serginho enquanto tirava a cerveja do violeiro do freezer. Já sabia qual marca ele tomava, nem precisava perguntar.
- Tá bom, mas antes me dá um golinho de pinga, vai? Só pra esquentar a garganta, sabe?
Servido da pinga, virou-se de lado, ainda sentado no banco alto de madeira, tirou o violão das costas, o apoiou na perna cruzada e começou a dedilhá-lo, buscando uma afinação qualquer. Tossiu forte duas ou três vezes e começou a cantar. Quando chegou o refrão da música, todos cantaram juntos:

Se um dia eu chorar
Ninguém vai saber por que
É meu modo de amar 
É meu jeito de querer
Ninguém vai fazer juízo 
Nem saber que estou sentindo
Tu verás o meu sorriso
entre lágrimas caindo”.

              Quando terminou, todos aplaudiram e sorriram, para logo em seguida voltarem ao silêncio de suas conversas particulares. O violeiro gargalhou, guardou o violão e começou a beber sua cerveja.
              - Esse é o hino do bar... Boa, Nenê! - gritou Serginho, voltando-se para a pia para lavar os copos sujos que lotavam a cuba.
Apesar de ser uma moda sertaneja – e Fil realmente não gostava de sertanejo –, sorriu ao ouvi-la e teve aquela leve constatação acolhedora de que todo mundo está no mundo se fodendo por alguém. Sempre há ressentimento amoroso em um vagabundo de bar. Sempre há ressentimento amoroso em qualquer ser que respire, seja ele bêbado ou não. Alguns rezam pra diminuir a dor; outros bebem pra esquecer a dor. A ressaca, em ambos casos, é uma merda.
- Você trabalha com o que, Fil? – perguntou Seu Zé.
- Pela minha cara e pelo meu jeito, só posso ser duas coisas: ou andarilho ou escritor de alguma coisa. Mas acho que as duas se fundem, então sou um escritor andarilho.
- E sobre o que você escreve?
- Tenho uma coluna de aconselhamento em um jornal semanal em uma cidade pequena aqui perto. Onde já se viu: um falido como eu tentando ajudar emocionalmente os outros... mas até que tem dado certo, viu?
- Mas que tipo de conselhos você dá? Pode ser que eu precise de um agora...
- Olha, basicamente são sempre mulheres com problemas emocionais muito graves. Ou que passaram por situações de extrema violência e abuso: estupro, agressão doméstica, pedofilia, casamentos onde não há respeito, zelo, carinho e amor... Essas coisas sempre mexeram demais comigo e tento ser útil ouvindo sem julgamento e sem dedo em riste. Apenas ouço o desabafo e tento ajudar. É o mínimo que podemos fazer: ouvi-las.
- Você é tipo um malvadão do bem, então...
- De certa forma. Mas isso sempre me derruba, sinto as dores em mim e não consigo dissipá-las. Por isso bebo. Pra esquecer um pouco de tudo o que vivo, sinto e assumo em mim.
- É a razão pela qual todos bebemos, não é? – se repetiu seu Zé.
- Claro. Mas diga: qual a sua dúvida? Talvez eu possa entender e dar uma opinião. Não é muito, mas é o que temos pra hoje... – sorriu Fil enquanto tomava outro gole.
- Pode parecer estranho, mas os ETs roubaram meu emprego!
Fil engoliu seco a cerveja, limpou o bigode e perguntou, cético:
- Como assim, os ETs roubaram seu emprego?
- É que eu trabalhava num apiário. Sabe o que é um apiário, não é? Claro que sabe. Então, de repente as abelhas começaram a sumir! E foi assim nos últimos cinco anos. Toda colméia que fazíamos, as abelhas sumiam sem deixar rastro. Algumas duravam mais, mas sempre metade ou mais da produção sumia em questão de semanas. Aí meu patrão cansou do prejuízo e fechou o local.
- Mas sumiam de morrer ou mudar pra outro lugar?
- Não: desapareciam sem deixar rastro. Quando uma abelha tá doente, ela se afasta da colméia e morre longe para não contaminá-la. E se fosse um “suicídio em massa”, saberíamos pois acharíamos todas em algum lugar mais distantes. Mas nem sinal de corpos.
- E por isso que acha que foram os ETs?
- Não está óbvio? Elas estão sendo seqüestradas pois os ETs querem polinizar seus planetas e dizimar o nosso. Sem as abelhas, não teremos mais frutas nem mais nada. Estaremos fodidos em poucos anos!
- Mas qual o conselho iria me pedir?
- O que faço com o mel que tenho em casa?
Ambos riram.

Já quase na hora de fechar, o bar estava praticamente vazio: luzes apagadas, restando apenas a que iluminava a parte da frente do estabelecimento, copos lavados, balcão enxugado, tacos de bilhar pendurados. Fil terminava sua última cerveja, acompanhado de Serginho, quando viu dois homens entrarem pela porta semi-fechada. Entraram em silêncio, de maneira quase assustadora. Os dois que estavam no balcão se entreolharam e bateu um medo. Sabe quando você sente uma vibração estranha em alguém e não sabe explicar o motivo, apenas sabe que sente algo? Então, foi assim.
- Vê duas pingas pra gente, parceiro? – disse o menos mal-encarado, se é que dá pra chamá-lo assim.
- Olha, já to fechando, mas dá pra servir duas doses ainda – respondeu Serginho, enquanto pegava os copos e garrafa.
Botou os copos no balcão e o barulho do vidro ecoou pelo ambiente vazio. Um pegou e virou a dose, enquanto o outro tirava a carteira do bolso e entregava uma nota para pagar pelas doses. Serginho pegou-a e se dirigiu ao fundo, para voltar com o troco. Escondia a féria do dia embaixo do fogão, na cozinha do bar. Tinha medo de andar por aí à noite com dinheiro no bolso. Preferia fazê-lo durante o dia, era mais seguro.
- Tô falando pra você, cara, um amigo me passou a fita: esse Bar da Lôra que os caras falam tem uma mulher lá que arma um esquema bem sigiloso mas que vale a pena – falava em voz baixa aquele que havia virado o copo de pinga.
- Mas não sei, viu? Porra: dá medo sair com ela assim. Vai que dá merda? – resmungou o outro antes de também virar sua dose.
- Vai por mim que vale a pena: eu já fui duas vezes e não tem coisa melhor pra você se sentir macho. Mas no caminho te conto como funciona melhor... – e dispersaram o assunto ao notarem que Serginho voltava com o troco. Agradeceram e saíram em silêncio.
Fil esperou Serginho fechar o bar e, já na rua, perguntou:
- Viu, onde fica esse Bar da Lôra? Você conhece?
- Até conheço, viu? Mas não vale a pena você ir lá, não. Só vai tranqueira, gente que a troco de bosta você perde a lata, ainda.
- Eu só quero tomar a saideira antes de ir pra casa - respondeu Fil, sorrindo pra disfarçar.
Serginho explicou onde era e desceu a rua, não sem antes virar-se pra FIl, que subia em sentido contrário, e convidá-lo para voltar mais vezes ao seu bar. Mas Fil já estava com a cabeça focada em outro lugar, em outro problema e nem ouviu o convite. Ele voltaria a freqüentar aquele bar várias vezes, porém agora queria saber o que rolava no tal Bar da Lôra.
              Pena que enquanto seguia o caminho indicado, lembrou-se que isso o afastaria demais de casa e que teria de voltar tudo aquilo à pé no meio da madrugada fria. Não que a madrugada o afugentasse, pelo contrário. Mas é que estava com quase nada de grana no bolso e estava realmente frio pra ficar na rua. Se tivesse pelo menos uma jaqueta pra aquecê-lo durante a caminhada, teria seguido com o plano inicial.

Parou, coçou a cabeça, suspirou fundo e voltou pelo mesmo caminho que seguia. Iria ficar acordado até o amanhecer, mas o faria aquecido em casa. Tem certas fases da vida em que tudo o que queremos é apenas um sofá pra deitar e coçar o saco esquecido.

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