Esse é apenas mais um conto de
fadas diferente daqueles que você conhece... Talvez seja apenas mais um dos
contos contados em tabernas por ogros embriagados, sem nenhuma pretensão de
convencer a quem os ouvem e que são repassados como fábulas irrisórias.
Havia, há não muito tempo, um
reino desses que todas histórias contam: um castelo, um rei, uma rainha e um
povo reinado. Não é preciso entrar em detalhes sobre como eram e o que faziam,
busque referência em tudo o que já leu e assistiu sobre histórias assim: é a
mesma coisa.
Como em várias noites das
semanas daquela época, o rei promovia festas aos mais próximos, para
rejubilarem-se com as conquistas fartas em que se fartavam. Lembre-se dos
salões lotados por vestidos e perucas e arrogâncias e mentiras e saberá do que
estou falando. Uma das atrações da festa era uma boba da corte, principal
elemento do qual o rei se gabava de manter em seu rol de funcionários.
Sim: naquele castelo, uma
bufona fazia o papel de agradar a realeza. Como tal, cumpria sem pudor sua
função. E era sempre ovacionada pelo clero, mesmo quando os criticavam em seus
costumes e conceitos e atitudes e devaneios. Debochava da monarquia e ainda era
agraciada com palmas. Ninguém sabia seu nome ou conhecia seu rosto. Sempre bem
maquiada e com roupas que escondiam seu perfil físico. O rei nunca fez questão
de conhecê-la além daquelas vestes por um simples motivo: um pedido da própria
bufona. Era simples: ela manteria sua identidade preservada e um quarto à sua
disposição com apenas uma chave disponível e o rei teria seus bajuladores
sempre bem humorados com suas apresentações. Por ser um pedido razoável, o rei
aceitou sem questionar e ordenou que todos assim a respeitassem.
E assim seguiram por semanas e
meses, sem nenhum conflito nos interesses. Mas, como a curiosidade não matou
apenas o gato, sempre há quem não se contente com o que os olhos veem
aparentemente.
Desconfiada, sabe-se lá
porque, a rainha resolveu um dia seguir sua bufona. Logo após sua apresentação,
pediu licença ao seu rei, alegando um mal estar súbito, e correu pelos
corredores do palácio em busca de saciar sua curiosidade. Esgueirando-se por
curvas e escadas, abria e fechava portas que apenas ela tinha cópia das chaves
e assim encontrou a boba adentrando em seu quarto e correu espiar-lhe pela
fechadura.
Dentro havia apenas um espelho
centrado no cômodo, uma cadeira e uma cômoda. Ao ver sua funcionária sentar-se,
notou o cansaço em seu rosto. Era como se toda aquela luz que ela reluzia no
salão se apagasse feito brasa molhada. Ela era uma mulher triste e cansada.
A rainha logo achou que seria
apenas um quarto feito de camarim, mas logo entendeu que não poderia estar mais
errada: por detrás do espelho, surge a figura de um homem alto, sem camisas,
trajando apenas uma calça de veludo vermelho dobrada até os joelhos. De longos
e enegrecidos cabelos e barba espessa quase acinzentada pelo tempo, ajoelhou-se
em frente à bufona e começou a tirar-lhe a maquiagem de trabalho.
Com poucas palavras e tom de
voz sereno e áspero, aos poucos foi limpando o rosto daquela que, cansada, se
postava à sua frente. Conforme conversavam, um breve sorriso começava a brotar
no rosto daquela que, lentamente, era despida de sua fantasia: o chapéu se
acomodava ao seu lado, no chão, revelando cabelos escuros e desmanchados; o
dorso respirava ao ter sua roupa desabotoada; a tinta em sua face era aos
poucos retirada com farrapos enrolados e banhados em uma tina de água entre
suas pernas. A desconstrução era natural e sem movimentos bruscos.
A rainha exaltou-se: iria
descobrir dois segredos na mesma noite. Quem, afinal, era essa personagem que
tanta alegria trazia ao reino nas noites alternadas de festa em sua casa?
Ao terminar, o homem
levantou-se e colocou-se entre a cadeira e a fechadura, barrando a visão da
rainha. Isso durou apenas uns minutos, o que fez com que a mesma ficasse
incomodada com a aparente frustração. Mas durou pouco tempo: ao sair da linha
de visão em que se colocou, o homem finalmente abriu espaço para a revelação de
um rosto refletido no espelho: tratava-se de uma duquesa que fazia parte do
séquito da rainha. Justo a duquesa que, estranhamente, sempre negava os
convites de fazer parte do corpo de baile da realeza. Alegava fortes dores de
cabeça que se agravavam com o excesso de barulho e luz e bebida. Como a rainha
não fazia questão de sua presença, nunca desconfiou e sempre deixou de lado as
recusas reincidentes de sua duquesa.
Atônita com a descoberta, sua
majestade pensou em abrir a porta para questionar-lhes do que acontecia, mas se
recolheu novamente atrás da fresta da fechadura ao notar que sua duquesa sorria
e aparentava estar descansada, com aquele mesmo ar que sempre lhe fora
tradicional nas manhãs de caminhada pelos campos que cercavam o castelo e nos
encontros ao final da tarde com chás e bolos e fofocas sobre as demais rainhas
e princesas dos reinos adjacentes.
O sorriso da bufona era tão
mais aliviado do que aqueles que ela mesma proporcionava nos andares de cima de
onde se encontravam naquele momento. O olhar era diferente, estava iluminado e
beirava a perfeição. Era como se uma nova mulher estivesse sentada naquela
simples cadeira daquele quarto vazio de mobília, mas repleto de vida e luz. Ao
invés de sentir inveja, a rainha sentiu paz. Poderia acabar com aquela
palhaçada, se me perdoa o termo alusivo.
Assim, a rainha levantou-se e
bateu o pó de suas vestes que ajoelhadas à porta se sujaram e voltou para o
salão. Mas aquela imagem a perseguiria por semanas a fio.
Era uma remota manhã de
primavera, o sol jogava nas planícies suas calorosas madeixas douradas que
penteavam a relva jovem e esverdeada, enquanto o vento fresco lambia as árvores
que sorriam ao longe com o indefectível som de suas folhas balançando. O
séquito seguia sua caminhada, mas dessa vez sem sua rainha, que resolveu naquele
dia voltar ao quarto em questão. Sabia que sua duquesa não estava lá, já que a
mesma estava em um dos campos. Despistou as serviçais, desceu as mesmas
escadas, curvou os mesmos corredores, abriu e fechou as mesmas portas e
finalmente se colocou em frente ao quarto.
Bateu uma vez. Apenas o
silêncio respondeu. Bateu pela segunda vez. Novamente, o mesmo. Tornou a bater
pela terceira vez e ordenou para que, quem estivesse ali dentro, abrisse a
porta ou então traria a guarda real para arrombá-la. Esperou o silêncio ser
profanado pelo andar sorrateiro e receoso de passos largos e firmes.
Ao escutar a trava se
destravar, abriu com certa cautela, não sabendo como seria recebida por aquele
que ocupava o cômodo. Empurrou a porta e o encontrou de costas, de cabeça baixa,
vestindo a mesma calça de veludo vermelha dobrada até os joelhos. A rainha
adentrou, fechou a porta atrás de si, deu um passo para o lado e alcançou a
imagem do homem refletida no espelho, aquele mesmo espelho que se firmava no
centro do quarto como uma janela da realidade que os cercava. Antes de
pronunciar qualquer palavra, notou duas cicatrizes enormes em forma de V em
suas costas.
- Qual seu nome, rapaz? –
perguntou-lhe com a voz de autoridade que lhe cabia ao momento.
- Me chame apenas de Fil... senhora
– respondeu-lhe o ser que seguia com a cabeça baixa em frente ao espelho. A voz
estava um pouco diferente daquela que havia ouvido semanas antes, mais
embargada, e o linguajar inadequado para alguém que se dirigia à um membro da
realeza. Cogitou tocar-lhe as cicatrizes nas costas, mas conteve o ímpeto.
- E o que fazes aqui? Sabe
quem sou eu? Olhe para mim enquanto falo com você...
Ao virar, o homem de calça de
veludo vermelho tirou os cabelos longos que cobriam o rosto de forma
desordenada, tal qual uma cortina preta e ondulada. Colocou-se de frente para a
rainha e respondeu:
- Sim, majestade: sei com quem
estou falando...
Notou que agora era o
semblante do homem que estava cansado, muito assemelhado ao da duquesa na noite
em que a descobriu como bufona. Mesmo com a voz embargada e o olhar cansado,
sentiu um estranho acolhimento vindo daquele que se agigantava à sua frente.
- Posso sentar-me nesta cadeira que é do meu palácio?
- Fique à vontade... como vossa majestade mesma disse: a cadeira é tua.
Colocou-a na parede oposta à porta, com o intuito de deixar que a pequena
janela de vidros sujos iluminasse melhor aquele com o qual conversava. Ao
sentar-se, viu que atrás do espelho havia uma série de ânforas de vinho
espalhadas pelo chão.
- Agora me diga: o que fazes aqui? Como nunca o vi por todo o castelo?
- Essa era uma das exigências da duquesa, não?
- Exato: mas qual a finalidade disso tudo? Ela o mantém escravizado aqui
dentro, é isso?
- Não exatamente, majestade... não exatamente.
- Acho isso um pouco improvável, meu caro rapaz, já que suas costas estão com
marcas severas de uma aparente agressão.
Ao ouvir isso, o homem apenas curvou-se um pouco para a frente, levando uma das
mãos até os ombros, como que se lembrasse do que produziu tais cicatrizes.
- Posso me sentar, majestade? Assim contar-lhe-ei o que queres tanto saber.
A rainha consentiu com a cabeça e viu o homem sentar-se à sua frente, entre as
ânforas espalhadas pelo chão.
- Se incomoda caso eu tome algum gole de vinho, minha rainha? Aliás: estás
servida de um pouco?
- Não acho apropriado para o horário, mas sirva-se como achar conveniente... –
assentiu sua majestade ao apoiar um dos braços no braço da cadeira.
- Até que ponto acreditas em lendas e fábulas? – questionou o homem antes de
virar um bom e longo gole de vinho de uma de suas ânforas.
- São necessárias para manter a harmonia do reino. Muitas ajudam a manter a
ordem, já que não são questionadas pelos súditos. Eu mesma cheguei a acreditar
em várias quando criança. Mas por que? O que isso tem a ver com a minha
pergunta, rapaz?
- Porque preciso saber até que ponto vossa majestade me considerará louco e me
mandará para a fogueira por bruxaria, talvez...
- São épocas passadas, meu jovem... – assim o chamou, apesar de não senti-lo
tão jovial assim.
- Fui designado para cuidar de vossa duquesa... isso lhe soa loucura?
- Designado por quem? Algum outro rei o infiltrou? Meu séquito corre risco de
um atentado? Me diga agora e ordenarei que os guardas o prendam por traição!
- respondeu quase se levantando da cadeira.
- Calma, minha rainha... se acalme... – se postou o homem em sua frente,
ajoelhando e segurando seus braços junto à cadeira.
Notou o mesmo tom de voz que ouvira naquela noite e se acomodou novamente.
- Sou um anjo...
e fui escolhido para proteger a duquesa ao longo dos tempos.
- Um anjo? Ao longo dos tempos?
Como assim? – sorriu ironicamente a rainha.
- Exato: séculos e mais séculos ainda virão nesse desígnio divino, por assim
dizer – sorriu de volta.
Sua primeira reação seria de deboche, mas deixou que falasse mais. Talvez a
manhã de primavera a tivesse deixado mais leve.
- Nunca vi um anjo sem asas... – rebateu a rainha.
- Isso explica as cicatrizes... – respondeu-lhe, zombeteiro, de volta.
- E isso aconteceu como?
- A única coisa que eu não poderia fazer, eu fiz... Minha única missão era
admirar e proteger a duquesa, mas nunca poderia tocá-la e me apaixonar por ela.
Mas quando me vi envolto pela beleza daquele olhar, esqueci-me de minha
condição e fiz justamente a única coisa que não poderia fazer. Como castigo,
sigo esperando o nascer e o morrer daquela cujo a qual fui designado a
proteger... e sem poder ter minhas asas de volta.
- Então essa não é sua primeira vez com ela? – arguiu a rainha, deixando toda a
dúvida de lado e aceitando a versão que ouvia.
- Certamente... assim como certamente não será a última.
O homem esticou as pernas, abaixou a cabeça e respirou fundo, lembrando de
todas as eras que passou naquele eterno nascer-morrer de sua protegida.
- Mas isso é muita crueldade... Não há o que ser feito? Você não pode se tornar
mortal, não pode de alguma forma reverter esse castigo?
- Algumas coisas são apenas consequências de nossos atos, majestade. E não veja
como castigo ou crueldade: tive opções, arquei com a escolha de uma e vivo sob
tutela dela. Posso não governar homens, posso não conquistar tesouros, mas em
algum mundo, eu sou único no mundo de alguém. Isso me basta...
- Mas então você poderia reverter isso.
- Sim: que eu renunciasse o sentimento, renegasse a proteção que me cabia e
assim seria poupado do desaladamento. Nem sei se existe essa palavra, mas não
vejo outra melhor pra ilustrar alguém alado que perde suas asas. Vossa
majestade consegue pensar em alguma?
- Não... pode ser essa mesmo, está boa.
- Enfim... pode me levar para a masmorra agora, minha rainha. Essa é a única
história que tenho para contar.
- Não sejas tão tolo e me sirva um pouco deste vinho, sim, meu rapaz?
- Achei que não fosse pedir...
- Mas sabes que a duquesa está prometida ao duque do condado vizinho, não
sabes? – indagou a rainha antes de virar um gole de uma ânfora recém-aberta.
- E como sei... e como sei. Mas isso não faz diferença.
- E por que não? Sabes que nunca poderá tê-la como espera, não sabes?
- Sei... Mas temos o que alguns podem chamar de pacto. Vejas: enquanto ela
precisar, estarei por aqui para recarregá-la para fazer o que precisa fazer.
Enquanto ela sai, me recarrego em poesia, em dor, em vinho.
Ao dizer isso, apontou para um canto assombreado do quarto, onde uma pilha de
folhas manuscritas se acumulava com respingos de suor e vinho.
- Como isso, se estás com aparência tão cansada, fragilizada e embriagada? Como
isso é possível, diga-me? Não me soa nada justo.
- Me recarrego com um simples sorriso satisfeito ao vê-la sair com a face
refeita e a identidade reconquistada. Pelo menos assim gosto de ver... E
justiça é um conceito muito particular: o que é mais justo: viver para alguém
ou morrer sem ninguém?
- Não fosse o vinho tardiamente bebido, diria eu que não existes, meu rapaz...
- Aproveite, então, a dose e me conte mais sobre o que te apetece. Talvez eu
suma na penumbra desta noite e vossa majestade nunca mais volte a me encontrar.
- Bem... – e começou a falar, tirando seu manto real que a protegia do mundo.
O sol já não adentrava mais a
janela de vidros sujos e embaçados, o que indicava um certo virar das horas. Ao
perceber que havia passado muito tempo ali dentro, conversando com o homem de
calça de veludo vermelha, a rainha assustou-se:
- Preciso ir. O adiantar das horas mal me acometeu e talvez já estejam me
procurando.
O homem se levantou e a ajudou a se levantar da cadeira, estendendo-lhe uma das
mãos. Ao levanta-la, beijou a mão que segurava. Ao se encaminhar até a porta,
antes de abri-la, virou-se para ele e perguntou-lhe:
- Mas... o que ganhas com isso, com tanto sacrifício?
O homem sentou-se na cadeira, segurou os longos cabelos com uma das mãos,
apoiou a outra no joelho, respirou fundo e respondeu:
- Vossa majestade já viu o brilho daqueles olhos quando sorriem? Quando vires,
verás que não é nenhum sacrifício... - e voltou a alcançar uma ânfora
recém-esvaziada, buscando por aquele último gole.
Ao sair, a rainha se encontrou
com a duquesa a poucos passos da porta. A incredulidade estava estampada em seu
rosto, da mesma forma como sua maquiagem de bufona a camuflava de todo o reino.
Sua voz não saia, suas pernas não andavam, seus olhos não piscavam. A rainha
ajeitou seu vestido, dirigiu-se até sua duquesa e, ao passar por ela, parou ao
seu lado, ladeando ombros, com corpos em direções opostas. Olhou por cima deles
e disse à duquesa, sem perder a postura ereta:
- Por que o mantém perto?
- Por que preciso me ver além
da maquiagem, majestade...
- Sabes que não me resta
nenhuma alternativa, não sabes?
A duquesa mal conseguia
responder, quando ouviu de sua rainha:
- Posso emprestar de ti teu anjo? – e seguiu pelo corredor,
preenchendo-o com o barulho ecoado de seus saltos em passos um pouco desalinhados
pelo vinho.
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