#ContosDoOgro: Frio demais para dormir no chão - II

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
(primeira parte aqui)

Aquela manhã não teve sol radiante nem canto de pássaros. Apenas um céu cinza e um frio que entrava por todas as frestas do carro. Não soube precisar o horário, mas era uma das primeiras horas da manhã. Os vidros estavam embaçados por causa da sua respiração lá dentro e não enxergava onde estava. Demorou para se lembrar do que tinha acontecido, apenas tentava subir o banco e colocar o pescoço no lugar – quem já dormiu em um carro sabe como é essa dor. Parecia até que a dor fazia um barulho estridente cada vez que ele se mexia.
Por ter despertado cedo demais, o humor estava bem desafinado. É. Fil dormia até o meio-dia quase todo dia. Mas dormia tarde. Sempre achou que a manhã revela sempre a estupidez humana disfarçada de otimismo ou frustração pelo início do dia. Sempre há muita expectativa – gerada ou quebrada – em um “bom dia” dito ou ouvido. E isso era algo que realmente Fil evitava. Por isso começava a dormir quando todo o resto começava a acordar.
- Ô, puta que me pariu sentada, é isso o que dá acordar cedo... – reclamou ao ouvir um barulho intermitente no vidro.
Parecia alguém batendo, quase que com um desespero em forma de socos. Sentou-se, ainda com dificuldades por causa das dores, ergueu o banco e abriu o vidro. Um homem com roupas bem velhas, olhar vago, segurando um saco plástico enorme nas costas. Deu um passo para trás, engoliu seco, botou o saco no chão, esfregou as mãos e disse:
- O senhor tem um minuto pra me ouvir?
            - Desde que seja um minuto mesmo, pode falar...
- Olha, eu só tô batendo aqui porque eu tenho um problema, uma doença. E eu estou exterminando essa doença da minha vida. Mas, como toda doença, preciso fazer isso aos poucos.
              Fil ainda estava preocupado em conseguir se ajeitar no carro, para que a dor doesse menos. Notou na calçada, ao lado do saco plástico, um cachorro com um ar bem de vagabundo, daqueles que acompanham andarilhos por toda a cidade. O cachorro olhou para ele e FIl sorriu. Talvez isso tenha o ajudado a continuar a ouvir o discurso.
- Então, eu tenho uma doença séria, que é a doença da bebida. Bom, meu corpo tem essa doença. E como toda doença, preciso de tratamento. Eu não tô mentido, tenho até a receita aqui comigo. Eu preciso tomar uma certa dose de cachaças por dia. Será que o senhor não poderia me ajudar?
              Sem olhar para a cara do cara, respondeu que não tinha nada e já estava subindo o vidro quando o homem voltou a insistir.
- Nem cinqüenta centavos pra me ajudar? Se eu fugir do tratamento, vou voltar pra essa vida de bebedeira. Eu poderia inventar que preciso de dinheiro pra passagem ou pra comprar remédio, mas estou sendo sincero com o senhor.
Era um ponto importante a ser ressaltado. Afinal, quantas pessoas assumem que pedem dinheiro para beber? É sempre para comprar remédio, para ajudar a família ou para voltar para casa. Pelo menos a sinceridade do homem fez com que Fil procurasse no carro as parcas moedas que tinha e as entregasse para o honesto andarilho. Toda sinceridade precisa ser recompensada.
- Muito obrigado, senhor! Que Deus te ajude – agradeceu, pegando sua sacola no chão e virando a esquina, contando as moedas. O cachorro seguiu atrás, sem olhar para trás. A rua ainda estava bem vazia para o horário.
- É... às vezes só precisamos de um trago pra começar o dia – pensou Fil ao pegar sua garrafa de conhaque vazia.

Ligou o carro e saiu. Ainda tinha que descobrir como conseguir dinheiro para pagar ao chaveiro para abrir a porra da porta do seu apartamento. Rodou a esmo por uns trinta minutos e lembrou que o tanque estava com pouca gasolina. Seria mais um problema ficar sem o carro. Parou em uma praça qualquer e tentaria resolver o resto a pé, mesmo. Não sabia onde estava, só sabia que tinha gente na rua. E onde tem gente, tem alguém precisando de algo. Sempre. 
Era um bairro suburbano, com pessoas simples saindo para trabalhar muito cedo. Vans lotadas cortavam a avenida principal, carros com 20 anos de existência, bicicletas e motos barulhentas subiam e desciam em um ritmo que duraria o dia todo. Ninguém o notava na calçada, pareciam muito preocupados com os problemas que teriam de enfrentar logo mais. Não eram tristes, não eram felizes, eram apenas indiferentes. Quando o seu próprio mundo está em chamas você não tem muito tempo para apagar as labaredas do mundo alheio. Cada um com seu incêndio, correndo atrás de algum balde cheio.
O sol começou a ficar mais presente, enchendo a avenida com um clarão que doía a vista. Lembrou dos óculos escuros no porta-luvas do carro e se arrependeu de não pegá-los. Dificilmente FIl saía durante o dia sem eles. Era como se o sol o machucasse cada vez que o tocava. Sua luz machucava a pele e os olhos, castigando como se fosse arreio escaldante. Por não conseguir tolerar mais a clareza do dia, enfiou-se no primeiro ambiente escuro que encontrou: uma igreja pequena, com a pintura já descascada e tijolos aparentes. Estava paralela à avenida e quase ninguém mais notava sua existência naquele local. Era como se o mundo progredisse em volta e a igreja permaneceu no século passado.
As portas principais se abriram com dificuldade. Feitas em madeira pesada e antiga, parecia que há muito tempo não eram totalmente abertas. Ao entrar, notou um silêncio perturbador. O mundo lá fora havia sumido: a avenida com suas motos barulhentas e suas vans cheias se silenciaram. As pessoas não mais conversavam nos pontos de ônibus nem fofocavam encostadas aos portões de suas casas. Os mais religiosos poderiam dizer que seria a presença de Deus ali, mas Fil não acreditava nessas balelas de religião e logo deduziu que as paredes antigas e largas abafaram o som. Era como se fosse uma fortaleza, onde nem a luz do sol, quase à pino, se atrevia a atravessar qualquer fresta existente.  O altar estava escuro, mas revelava algumas imagens sacras penduradas. Antigas, com um aspecto bem peculiar. O teto não se via, mas era fácil notar que não estava tão alto. Nem mesmo o sino acima do altar era facilmente visto.
Sentou-se em um banco empoeirado e frio. Era desconfortável ficar ali, já que para ele Deus ou religião eram apenas obras de ficção. Quem o visse sentado daquela forma até poderia pensar que estava aflito em busca de resposta, mas o que precisava mesmo era de um trago e de um pouco de dinheiro.
Foi quando notou uma cortina ao fundo se abrir, revelando uma sala dividida por um biombo vazado. Parecia um confessionário, mas diferente daqueles que retratam em filmes. Um casal saiu sorrindo baixo, trocando pequenas falas e toques sutis por cima da cintura. A mulher era formosa, até: tinha seus 50 anos, belas pernas reveladas sob uma saia larga que cobria as coxas até o joelho, uma blusa fina de algodão branca e cabelos presos de qualquer forma. Já o homem vestia calça social, camisa preta de mangas curtas e um cabelo molhado em gel. As risadas, mesmo contidas, ecoavam no salão e ambos nem demonstravam preocupação com isso. Havia muita intimidade no andar deles. Fil sorriu e pensou que aquele confessionário foi palco de alguma confissão a dois, daquelas que só as paredes são testemunhas.
Ao passarem pelos bancos centrais, ainda rindo, notaram a presença daquele estranho sentado onde ninguém mais sentava. Pararam na hora e as expressões mudaram. Mesclavam preocupação e vergonha. Ela se despediu timidamente, arrumando o cabelo e a blusa e seguiu para uma porta lateral, que abriu com a facilidade de quem era costumeiramente usada, diferente da porta principal. Ao abri-la, a luz do sol que entrou revelou na mulher um sorriso seco e um olhar perdido. Parecia que não queria voltar para a vida fora daquele recinto.
O homem caminhou na direção de Fil, sentou-se ao seu lado e suspirou.
- Foi o marido dela quem te mandou, não é?
- Pode ser que sim, pode ser que não. O marido tem motivos pra mandar alguém atrás dela? – perguntou em tom sério e firme, sem olhar para o homem.
Ele sentou-se mais encostado ao banco, deslizando o corpo e cruzando os braços. Um deles apoiou a cabeça quando ela se abaixou, em tom desolado, com a mão cobrindo o rosto. Ficou em silêncio por um minuto e suspirou novamente, mais profundamente.
- Quanto você quer pra calar a boca e sumir daqui?
- Depende: quanto você está disposto a pagar pelo meu silêncio? – respondeu em tom ameaçador. O homem então virou-se para Fil e gritou:
- Escuta aqui: ninguém vai acreditar na sua história. Sou o padre desta paróquia e ninguém vem aqui há anos. Talvez nem se lembrem que eu exista, talvez nem se lembrem que esta igreja exista. E você não está com cara de quem viu algo que me comprometa ou que prejudique aquela senhora.
- O senhor não tem como saber disso, padre...
 - Ficamos 20 minutos conversando, apenas isso. Não há nada de mais em duas pessoas conversando, há? Me responda: há? – perguntava desesperado, tentando disfarçar com um sorriso irônico nos lábios.
- O senhor não sabe há quanto tempo estou aqui, nem quem sou e nem o que ouvi saindo lá de dentro. Mas, se não há nada de mais, não tem problema se eu sair por aquela porta, não é, padre? E me faça um favor: suba o zíper de sua calça, sim?
Fil levantou-se, então, saiu pelo lado contrário do banco e seguia rumo à porta. Caminhava lentamente, com um ar de quem levava consigo um segredo. Foi quando o padre disse, em tom amargurado:
- Espere! Sente-se e me aguarde um minuto, sim?
Parou de andar e apenas aguardou, sem olhar pra trás. Ouviu passos apressados se afastando. Logo em seguida, uma porta bateu e os passos voltaram em direção ao centro da igreja. Fil virou-se e viu o homem caminhando com um envelope nas mãos. Caminhava rapidamente e quase sem compasso. Estava assustado, talvez.
- Olhe, o que tenho aqui é isso. Não pode esquecer nossa conversa e esquecer esta esquecida igreja? – sorriu timidamente o homem.
- Que conversa, padre? Que conversa? – respondeu pegando o envelope e saindo sem pressa.
Ao chegar à porta lateral, a abriu relevando o dia ainda muito claro e a luz logo o cegou. Virou-se, então, para o padre que, desolado, aguardava sua saída. Enfiou o envelope no bolso e perguntou:
- Padre, por um acaso o senhor não tem vinho aí, tem?

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