A mãe do ogro

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
Perdi as contas de quantas vezes nos últimos meses comecei a escrever esse texto. E nunca estava bom o bastante. Abro uma página em branco, fito-a por alguns minutos, algumas linhas preenchem poucos parágrafos para logo em seguida serem apagados. Perdi as contas. Mas eu precisava escrever. Eu preciso escrever. Afinal: como podemos por em palavras um amor de mãe?

Eu, que sempre vi o amor como algo condicional, me vejo incapaz de escrever sobre a única exceção dessa regra. Nenhum amor é libertador. Amor está condicionado à existência de algo para existir. E se há necessidade do existir, não tem como ser livre. Excetuando-se, claro, as mães.

Quando escrevi sobre meu pai foi mais fácil: sentei-me, numa madrugada fria, abri a folha e o texto fluiu. Relação com pai é mais racionalizada, mesmo. Vemos o amor de pai como um amor “adotivo”: aquele homem optou por amar o filho de sua mulher. Sim, o filho é da mulher. O pai apenas opta por amá-lo como sendo seu também ou o trata apenas como um espermatozóide que vingou. Quando o pai optou por ser nosso, passamos a aceitá-lo com mais intensidade. Aquele cara escolheu nos amar, enquanto as mães simplesmente amam sem opção de escolha.

Mães amam por regime de coexistência.

Pode perceber: sempre temos muito mais medo de perder um pai do que uma mãe. E a razão desse “relaxamento” é que temos uma ligação estranha com nossa mãe. Por sermos gerados em seu ventre, roubamos um pouco de sua essência. E carregamos isso conosco por toda a vida. Basta estarmos vivos para sentirmos nossa mãe dentro de nós. Por conta disso, a relação com ela tende a ser menos racional, menos falada e mais sentida. Mutuamente sentida.

Uma cena acontecida neste ano resume um pouco o que preciso falar: fiquei internado durante um dia por conta de fortes dores abdominais sem razão aparente. Apenas me jogou no chão, me fez perder qualquer sentido e implorar por ajuda. E eu não peço ajuda. Pedi a Ana que me levasse ao hospital e no caminho ligamos para minha mãe. Chegou antes. E já tinha tudo pronto, tudo preparado. Era por volta das onze da noite e apenas uma pessoa poderia me acompanhar. Estava implícito que seria ela. Afinal, em cada crise de enxaqueca que me acomete, é sempre ela que me guia enquanto estou incapaz de raciocinar. Com essa dor desconhecida não seria diferente.

As dores me consumiam enquanto eu andava de um lado para o outro fazendo exames. E ela no hall de espera, com a Ana e minha irmã acompanhando-a, apenas olhando, sem poder ajudar. Era o olho dela que eu buscava quando passava pelo corredor de vidro. Era minha certeza de que eu estaria bem, de certa forma. Fui para o quarto, aquele silêncio ensurdecedor no corredor. Ela entrou e estava visivelmente incomodada com o que eu estava passando. Eu nunca tinha estado naquele estado, não daquela maneira. Puxou uma cadeira de plástico e sentou-se ao meu lado. Realmente estava frio e tudo era muito quieto. Parece que a dor aumentava na proporção do silêncio e do frio. Aquela cadeira em que ela se assentava era visivelmente desconfortável. Eu pedi que ela se deitasse ao meu lado, mas logo recusou, sorrindo, dizendo que estava tudo bem. E eu, egoisticamente, aceitei.

Algumas horas passaram, nada de exames prontos, remédios que nada adiantavam e eu desmaiava de dor. Perdia o sentido mas via alguém em pé ao meu lado. Era ela. De repente ela sai e volta trazendo consigo uma enfermeira. E a enfermeira, consigo, uma injeção. Apaguei em minutos. Pouco tempo depois, acordo mais aliviado e sinto uma pressão nos pés. Era ela, sentada na cadeira, com a cabeça apoiada na cama e os braços em cima de minhas pernas. Adormecera assim. Em meio ao frio da preocupação e do quarto gélido, em meio ao silêncio do corredor e a ausência de informação sobre o que me ocorrera. Eu não poderia estar mais bem protegido. Arrumei-me na cama e, assim, a despertei. Acordou sorrindo ao ver que eu estava um pouco melhor. Horas mais se seguiram e ela não dormiu mais.

Eu não poderia estar mais bem seguro.

Em outra oportunidade, ainda neste ano, pude sentir aquilo que ainda sou incapaz de expor em linhas, parágrafos e laudas: minha avó, mãe da minha mãe, morreu quase que subitamente. Passou mal num sábado onde todos organizavam uma festa junina. Foram dias de agonia que terminaram num telefonema no começo da noite da terça-feira seguinte, no trânsito: - Felipe, a vó morreu.

Na hora pensei em minha mãe, dei meia-volta no percurso, avisei a Ana que iríamos ao hospital pois minha mãe precisava de mim. Cheguei, minha irmã mais velha se jogou nos meus braços chorando enquanto meus olhos buscavam minha mãe. Outros parentes desceram até que a avistei no corredor acima do hall de entrada. Ao abrir a porta, veio em minha direção, abriu caminho para as lágrimas e disse: - Acabou, filho... acabou!

Eu não pude chorar. Não com ela assim. Pela primeira vez em muitos anos eu não sabia o que fazer, o que falar, como agir. Eu estava indefeso, tendo em meus braços minha fortaleza recém-abalada. Apenas a beijei, segurando-a em mim alguns segundos.

Já no velório, depois de toda a correria que se segue após a bomba explodir, passado todo aquele estranho momento até então desconhecido, ficamos eu e ela na sala, velando minha avó. Outras pessoas passariam a madrugada por ali, mas haviam levantado por algum motivo. A noite era fria, o vento entrava por todos os lados. Era um ambiente gélido e silencioso. Peguei um cobertor no meu carro, que eu havia providenciado horas antes, e joguei por cima de suas pernas. Ficamos conversando, relembrando bons momentos passados ao lado de sua mãe e minha avó. A madrugada assim seguiu-se, menos traumatizante do que esperávamos.

Minha mãe é meu brainstorm. É com ela que treino minha oratória, argumento meu discurso, fundamento minhas teorias, organizo meus conceitos. Seja nos casos no Querido Ogro, seja numa simples eliminação num reality show. E foi assim desde sempre: eu de um lado, questionando tudo e todos e ela do outro, me deixando ser quem sou.

Não me lembro quando foi a última vez que disse um “te amo” para ela. Nem sei se cheguei a dizer algum dia. Porque nossa relação é assim, não importa o quão gélido e silencioso seja o ambiente: ela aquecerá meus pés em meio a minha dor; eu a conduzirei por vias escuras em meio a sua dor.

Minha mãe é o oceano que me fez ser mar. E eu ainda rio.
Ah, como rio, agradecido por ser seu filho.

10 comentários:

  1. Carol Viana disse...
  2. Tá... falar q engasguei lendo é redundância...
    Se o maior amor é de uma mãe, nada se compara ao amor de um filho que valoriza essa relação..
    Vi nela a beleza da minha relação com minha mãe...
    Filho quando ama desse jeito, nem precisa dizer, quando olha e abraça.. ela sente que valeu a pena cada chute na barriga, cada fralda trocada, cada bronca e cada pulo do coração de não saber pq vc chegaa tão tarde das festas.
    Mãe é a coisa mais deliciosa desse mundo... e ela deve é ter muito orgulho desse filho... eu teria... ;-)

  3. Paula Lopes disse...
  4. É exatamente assim que as coisas são.

    Tentei fazer um comentário que pudesse acrescentar algo ao que vc escreveu, mas não acho que seja preciso.

    Acredito que aquela coisa que dizem sobre coração de mãe sempre caber mais um seja verdade mesmo. E tenho certeza que, de alguma forma, vc deve ter conquistado algum espaço no da minha mãe.

    Sua mãe deve se orgulhar do filho que tem! :)

  5. Unknown disse...
  6. Lindo texto... Depois que me tornei mãe, minha concepção do "mundo das mães" mudou muito. E vc conseguiu descrever uma característica fundamental dele. Mães são cobertores, quentes, confortáveis qdo tudo mais eh frio, desconcertante. As mães querem sempre proteger os filhos como se eles ainda estivessem dentro da gente. Pra ser bem honesta, ficamos com a sensação de que nunca saíram. Tenho certeza que se falassem pra sua mãe, no momento em que vc sentia dor, que ela poderia trocar de lugar e senti-la por vc, ela o faria. Mas as mães sabem que algumas dores são inevitáveis, então nos resta sentar na cadeira ao lado e mostrar que estamos ali.
    Lindo texto! Linda mãe, que deve estar muito orgulhosa deste lindo Filho!!

  7. Isabel disse...
  8. também fiquei engasgada... e confesso que até chorei lendo seu relato... Tudo que eu disser aqui sera pouco, simplesmente maravilhoso... Leve isso para sua mãe ler.

  9. Anônimo disse...
  10. Li de novo. Chorei de novo! :@:@:@

  11. Marcelo disse...
  12. Fantástico. Vou lembrar dessa frase "Eu estava indefeso, tendo em meus braços minha fortaleza recém-abalada."

    parabéns!

  13. Karola disse...
  14. Nossa, chorei...
    Verdadeiro... uma das coisas mais bonitas que temos na vida: mãe!

    Saudades Ogro

  15. Anônimo disse...
  16. Não sei dizer quando deixamos de ser somente mãe e filho, para sermos também melhores amigos.Há entre nós uma simbiose que só existe entre almas gêmeas.VOCE é meu porto seguro. VOCE me conhece talvez melhor que eu mesma! Muitas vezes não precisamos falar nada. Apenas um olhar, já sabemos que algo acontece. Esta nossa ligação vem desde o seu nascimento. No momento do parto percebi que era uma alma especial, que estava sendo colocada aos meus cuidados. E assim
    na sua infãncia, juventude e agora este maravilhoso homem em que voce se tornou, sempre tivemos esta ligação especial. Amar voce como amo, não tem explicação. Sei que todas as mães amam a seus filhos.A nossa forma de amar não precisa de palavras. Sinceramente, não sei o que dizer de suas palavras. Me emocionei muito,e tb fiquei surpresa, pois nunca sabermos como as pessoas nos veem, e saber que um filho tem este sentimento por mim, me deixa sem palavras. Espero corresponder sempre aos seus anseios,espero poder estar sempre ao seu lado nas horas boas e não tão boas. Que esta energia e este amor que nos une transceda os limites desta vida. Com todo amor que eu possa lhe dar......sua mãe

  17. Anônimo disse...
  18. Nossa,este texto me tocou tão,tão fundo...
    Beijos em ti

  19. Maitê Voigt disse...
  20. Hoje, terça-feira, 9:31, abro minha caixa de entrada de e-mails e me deparo com esse texto escrito pelo meu querido e ogro irmão.
    Me pego pensando no que escrever, para poder acrescentar, se é que isso é possível, alguma coisa nesse texto. Ainda mais por saber que não escreverei tão bem quanto você, mas farei...
    Diante de tantas preocupações sobre meu festival de dança do ventre, que acontecerá em menos de uma semana, me identifico fortemente com esse texto. Não por ser simplesmente filha (também) da protagonista, mas por estar tão intimamente ligada às histórias aqui contadas. Minha (nossa) mãe é isso. Fortaleza em que nos apoiamos nos mais distintos acontecimentos de nossas vidas. Que nos ajuda nos eventos mais simples, porém complexos, como um festival de dança. Sem ela não aconteceria... Seria pelo simples fato de que sem a companhia dela, eu não saberia o que fazer? Logicamente...
    Em contrapartida, quando li o texto "O pai do ogro", tive a certeza que aquela figura da qual você falava, também era meu ídolo. Sempre foi e será... Um pai único, diferente, engraçado, presente. Perdi as contas de quantas vezes me disseram isso. Quantas pessoas queriam ter um pai como o nosso. Bocudo, bigodudo, lemão... carinhoso, amoroso e paizão. Aquela figura que aprendi a admirar, pelo simples jeito de resolver as coisas. O seu jeito...
    Esses são nossos pais... Sem os quais minha vida não seria essa vida. Sem os quais, minhas decisões mais difíceis não seriam tão simples diante de sua sabedoria.
    Diante de tudo isso, chego a conclusão que nossos pais são os melhores pais do mundo. Com todos os seus defeitos.... Com todas as suas qualidades... E quantas qualidades. Pais presentes, pais fortes, pais... no mais puro sentido da palavra...

    É, Fe... O "eu te amo" em nossa família nunca foi necessário. E nunca será. Basta um simples olhar, ou como todos nós sabemos, o silênc io diante do sentimento grandioso que temos uns pelos outros. Fazer parte dela é surreal... E eu agradeço imensamente por isso.

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