Naquela
manhã– ou melhor, ao meio-dia daquele dia – Fil foi acordado novamente pelos
berros da vizinha. Mesmo com o rosto inchado e os cabelos desafiando a
gravidade, vestiu uma bermuda jeans e uma camiseta preta que estavam em uma
cadeira na sala, foi até a pia da cozinha jogar uma água no rosto e resolveu
descer os dois lances de escadas que separavam os andares.
Ao descer,
lembrou que nunca havia prestado atenção no que os gritos diziam. Não sabia se
eram xingamentos, se eram ordens. Apenas os ouvia sem conseguir distinguir. E
também se lembrou de que nunca havia cruzado com a vizinha pelo prédio. Não
sabia sequer em qual dos quatro apartamentos de baixo iria bater. Conhecia
apenas a menina de vê-la brincando sozinha na garagem, às vezes.
Não foi
difícil saber em qual das portas bater. Era naquela que saiam os gritos
indecifráveis. Apoiou-se no batente da porta e bateu quatro vezes seguidas, com
o punho cerrado. Não houve resposta nem silêncio na gritaria. Bateu mais quatro
vezes, aumentando a intensidade. Ainda nada de resposta. Esmurrou oito vezes, quase
como se a porta fosse a cara da dona daquela voz que ele desconhecia o rosto.
A porta se
abriu e fez vazar a gritaria.
- Ludmila,
eu já te falei mais de mil vezes que você vai entrar comigo naquele carro
queira você ou não! Você já me dá dor de cabeça e gastos demais para ficar aí
com frescura! A vida não é tão fácil quanto você pensa que é...
Fil avistou
Ludmila sentada ao fundo do cômodo que a porta revelou. Era mesmo aquela menina
que via brincar na garagem. Deveria ter uns 11 anos... 13 no máximo. Vestia um
vestido vermelho e chorava contida sentada no braço do sofá verde velho. Seu
olhar ao vê-lo foi de vergonha e abaixou a cabeça para não ser vista naquele
estado.
A porta se
abriu mais ainda e mostrou finalmente a responsável pela zona toda: uma mulher
na casa dos 40 anos, não era uma velha como imaginou. Mas sua voz era rouca e
grossa, daquelas de quem fuma uns três maços de cigarro por dia - trazia um
cigarro no canto da boca, inclusive – e dava a impressão de ser uma velha
amarga. Sua pele também.
- O que
você quer? – perguntou no mesmo tom com o qual gritava com a filha.
- Sou seu
vizinho de cima e será que dá pra diminuir um pouco o volume dessa missa?
- Que
missa? Tá maluco? Aqui não tem missa porra nenhuma!
Fil
percebeu, então, que ironia não era o forte da maluca.
- Estou
apenas pedindo que diminua o som do seu berreiro que me acorda todos os dias e
me deixa de saco-cheio. Será que pode ser? – disse ainda apoiado no batente.
- Ah, vá
chupar um pau por aí - gritou a mulher, virando o rosto de volta pra sala e
jogando a porta para ser fechada.
Fil também
abaixou a cabeça, segurou os cabelos e subiu as escadas de volta para seu
apartamento. A gritaria continuou abafada... Pensou em bater novamente, mas
sabia que não aguentaria olhar aquela vaca de novo sem ter vontade de
espancá-la. Pelo menos não naquela hora. Mas ele voltaria a encontrá-la... mais
cedo do que imaginava.
Pegou a
chave no bolso esquerdo e colocou sem o habitual cuidado de sempre - afinal, a
fechadura ainda estava travando na segunda volta e ele só tinha uma chave.
Talvez tenha sido a cabeça quente com a vaca do andar de baixo, talvez fosse a
preocupação com aquele olhar da Ludmila que escondia algo além da vergonha, mas
a ansiedade em abrir logo a porta fez com que FIl quebrasse a chave dentro da
fechadura. Pois é: sem acesso ao apartamento, sem celular para ligar para um
chaveiro. Pensou em arrombá-la, mas aí não poderia sair tranquilo. Sentou-se no
tapete e ficou por ali, sem ter saco pra pensar em nada. Adormeceu de uma maneira
estranhamente natural. Mas também não era a primeira vez que dormira no chão.
Já estava
escuro quando sentiu uma mão o acordando. Levantou assustado, ainda com os
olhos embaçados. Quando recobrou os sentidos, lembrou-se da merda que aconteceu
com a chave. Sua sorte era que carregava as chaves do apartamento e do carro em
um molho só. Assim poderia sair procurar alguém que resolvesse o problema.
Procurou o dono da mão que o acordou, mas não encontrou ninguém. Talvez tenha
sido um daqueles sonos em que você acorda quando sonha que está caindo ou
tropeçando. Acordou com o sopetão do sono.
Desceu os
lances de escada novamente e viu uma luz iluminar o pequeno corredor no andar
de baixo. Era uma luz fraca, vinda de uma porta entreaberta. Quando olhou, era
a porta em que tinha batido horas antes. E a segurando estava Ludmila, com o
mesmo vestido vermelho, com o mesmo olhar triste e envergonhado, mas sem
lágrimas escorrendo pelo rosto.
- Estava
frio demais para você dormir no chão... – disse a menina, com a voz quase
ausente e fechando a porta com um sorriso meigo, até.
Não teve
tempo de agradecê-la. Apenas ouviu o silêncio reinando. Provavelmente a menina
estivesse sozinha, por isso pôde sair, por isso estava sem lágrimas caindo.
Quando
chegou ao carro, Fil percebeu que estava sem sua carteira. Não que tivesse
dinheiro dentro dela, mas pelo menos poderia pagar pelo serviço do chaveiro.
Pegou um cartão bancário dentro do porta-luvas e lembrou que talvez tivesse
alguma grana por lá. Trafegou pela
Avenida Campinas e a rua Doutor Trajano numa velocidade baixa, acompanhado pela
mente cheia de vazio, ouvindo um blues vagabundo qualquer. Quinze minutos
depois, estava em frente a uma agência bancária.
Estacionou em frente a agência, na vaga de
idosos. Já era quase dez da noite, não teria problema de algum velhinho xingá-lo de
moleque que não respeita os mais velhos. Desceu vestindo apenas a mesma bermuda jeans e a
camiseta preta. A noite é fria e
o vento também. Nessa hora é bom ter cabelos até os ombros. Pelo menos protege
a nuca. Ao tirá-los do rosto para sair do
carro, Fil nota uma mulher na esquina da agência.
Parece esperar alguém. Não vê seu rosto, usou apenas o olhar periférico. Mas ela
pareceu vê-lo.
Entrou.
Dois minutos depois, saiu. O depósito não
foi feito. Ao sair, a mulher ainda estava na fria esquina. Fil continuou olhando pela periférica. Em sua frente, uma
praça escura iluminada por meia dúzia de postes com luzes amarelas. Já dentro
do carro, ligou o blues de novo. Demoraria pra sair. Sem chaves, sem dinheiro,
para onde mais iria?
A mulher continuou na esquina, sem
parecer notá-lo no carro. Ele também ainda não viu seu rosto. Ela parece procurar algo
enquanto espera alguém. Um
carro encosta. Rebaixado, décadas de uso. O vidro escuro do passageiro desce. A
mulher da esquina segue até ele. Debruça na porta com o vidro aberto. Rola um
papo de 15 segundos. Ela tenta abrir a porta e não consegue. Fil pensou em voz baixa:
- Esse filho da puta vai aprontar com ela? Não gostou do preço? Idiota!
Mas não aprontou. Sem que revelasse seu rosto, ela entra e o carro sai. E
FIl ficou, dentro do seu carro. De qualquer forma, a noite
não acabou bem para ambos. Mas pelo menos
ela teria uns trocados na carteira ao final dela. Mesmo que tivesse que vender
toda sua crença no ser humano. Crença essa que, às vezes, vale menos do que
esperamos. Ele mesmo perdera a sua sem ganhar nada em troca.
Como estava fora do seu habitual
horário de dormir, pegou uma pequena garrafa no porta-luvas, daquelas que cabem
no bolso. Estava cheia de conhaque barato. Tomou tudo em praticamente dois
goles. Isso ajudaria a dormir. Ou pelo menos o apagaria por algumas horas.
Travou as portas, desceu o banco e ficaria por ali mesmo, se protegendo do frio
enrolado aos tapetes do carro e às vagas lembranças.
(continuação aqui)
(continuação aqui)
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