#ContosDoOgro: Frio demais para dormir no chão - I

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
Naquela manhã– ou melhor, ao meio-dia daquele dia – Fil foi acordado novamente pelos berros da vizinha. Mesmo com o rosto inchado e os cabelos desafiando a gravidade, vestiu uma bermuda jeans e uma camiseta preta que estavam em uma cadeira na sala, foi até a pia da cozinha jogar uma água no rosto e resolveu descer os dois lances de escadas que separavam os andares. 
Ao descer, lembrou que nunca havia prestado atenção no que os gritos diziam. Não sabia se eram xingamentos, se eram ordens. Apenas os ouvia sem conseguir distinguir. E também se lembrou de que nunca havia cruzado com a vizinha pelo prédio. Não sabia sequer em qual dos quatro apartamentos de baixo iria bater. Conhecia apenas a menina de vê-la brincando sozinha na garagem, às vezes.
Não foi difícil saber em qual das portas bater. Era naquela que saiam os gritos indecifráveis. Apoiou-se no batente da porta e bateu quatro vezes seguidas, com o punho cerrado. Não houve resposta nem silêncio na gritaria. Bateu mais quatro vezes, aumentando a intensidade. Ainda nada de resposta. Esmurrou oito vezes, quase como se a porta fosse a cara da dona daquela voz que ele desconhecia o rosto.
A porta se abriu e fez vazar a gritaria.
- Ludmila, eu já te falei mais de mil vezes que você vai entrar comigo naquele carro queira você ou não! Você já me dá dor de cabeça e gastos demais para ficar aí com frescura! A vida não é tão fácil quanto você pensa que é...
Fil avistou Ludmila sentada ao fundo do cômodo que a porta revelou. Era mesmo aquela menina que via brincar na garagem. Deveria ter uns 11 anos... 13 no máximo. Vestia um vestido vermelho e chorava contida sentada no braço do sofá verde velho. Seu olhar ao vê-lo foi de vergonha e abaixou a cabeça para não ser vista naquele estado.
A porta se abriu mais ainda e mostrou finalmente a responsável pela zona toda: uma mulher na casa dos 40 anos, não era uma velha como imaginou. Mas sua voz era rouca e grossa, daquelas de quem fuma uns três maços de cigarro por dia - trazia um cigarro no canto da boca, inclusive – e dava a impressão de ser uma velha amarga. Sua pele também.
- O que você quer? – perguntou no mesmo tom com o qual gritava com a filha.
- Sou seu vizinho de cima e será que dá pra diminuir um pouco o volume dessa missa?
- Que missa? Tá maluco? Aqui não tem missa porra nenhuma!
Fil percebeu, então, que ironia não era o forte da maluca.
- Estou apenas pedindo que diminua o som do seu berreiro que me acorda todos os dias e me deixa de saco-cheio. Será que pode ser? – disse ainda apoiado no batente.
- Ah, vá chupar um pau por aí - gritou a mulher, virando o rosto de volta pra sala e jogando a porta para ser fechada.
Fil também abaixou a cabeça, segurou os cabelos e subiu as escadas de volta para seu apartamento. A gritaria continuou abafada... Pensou em bater novamente, mas sabia que não aguentaria olhar aquela vaca de novo sem ter vontade de espancá-la. Pelo menos não naquela hora. Mas ele voltaria a encontrá-la... mais cedo do que imaginava.
Pegou a chave no bolso esquerdo e colocou sem o habitual cuidado de sempre - afinal, a fechadura ainda estava travando na segunda volta e ele só tinha uma chave. Talvez tenha sido a cabeça quente com a vaca do andar de baixo, talvez fosse a preocupação com aquele olhar da Ludmila que escondia algo além da vergonha, mas a ansiedade em abrir logo a porta fez com que FIl quebrasse a chave dentro da fechadura. Pois é: sem acesso ao apartamento, sem celular para ligar para um chaveiro. Pensou em arrombá-la, mas aí não poderia sair tranquilo. Sentou-se no tapete e ficou por ali, sem ter saco pra pensar em nada. Adormeceu de uma maneira estranhamente natural. Mas também não era a primeira vez que dormira no chão.
             
Já estava escuro quando sentiu uma mão o acordando. Levantou assustado, ainda com os olhos embaçados. Quando recobrou os sentidos, lembrou-se da merda que aconteceu com a chave. Sua sorte era que carregava as chaves do apartamento e do carro em um molho só. Assim poderia sair procurar alguém que resolvesse o problema. Procurou o dono da mão que o acordou, mas não encontrou ninguém. Talvez tenha sido um daqueles sonos em que você acorda quando sonha que está caindo ou tropeçando. Acordou com o sopetão do sono.
Desceu os lances de escada novamente e viu uma luz iluminar o pequeno corredor no andar de baixo. Era uma luz fraca, vinda de uma porta entreaberta. Quando olhou, era a porta em que tinha batido horas antes. E a segurando estava Ludmila, com o mesmo vestido vermelho, com o mesmo olhar triste e envergonhado, mas sem lágrimas escorrendo pelo rosto.
- Estava frio demais para você dormir no chão... – disse a menina, com a voz quase ausente e fechando a porta com um sorriso meigo, até.
Não teve tempo de agradecê-la. Apenas ouviu o silêncio reinando. Provavelmente a menina estivesse sozinha, por isso pôde sair, por isso estava sem lágrimas caindo.
Quando chegou ao carro, Fil percebeu que estava sem sua carteira. Não que tivesse dinheiro dentro dela, mas pelo menos poderia pagar pelo serviço do chaveiro. Pegou um cartão bancário dentro do porta-luvas e lembrou que talvez tivesse alguma grana por lá. Trafegou pela Avenida Campinas e a rua Doutor Trajano numa velocidade baixa, acompanhado pela mente cheia de vazio, ouvindo um blues vagabundo qualquer. Quinze minutos depois, estava em frente a uma agência bancária.
Estacionou em frente a agência, na vaga de idosos. Já era quase dez da noite, não teria problema de algum velhinho xingá-lo de moleque que não respeita os mais velhos. Desceu vestindo apenas a mesma bermuda jeans e a camiseta preta. A noite é fria e o vento também. Nessa hora é bom ter cabelos até os ombros. Pelo menos protege a nuca. Ao tirá-los do rosto para sair do carro, Fil nota uma mulher na esquina da agência. Parece esperar alguém. Não vê seu rosto, usou apenas o olhar periférico. Mas ela pareceu vê-lo.
Entrou. Dois minutos depois, saiu. O depósito não foi feito. Ao sair, a mulher ainda estava na fria esquina. Fil continuou olhando pela periférica. Em sua frente, uma praça escura iluminada por meia dúzia de postes com luzes amarelas. Já dentro do carro, ligou o blues de novo. Demoraria pra sair. Sem chaves, sem dinheiro, para onde mais iria?
A mulher continuou na esquina, sem parecer notá-lo no carro. Ele também ainda não viu seu rosto. Ela parece procurar algo enquanto espera alguém. Um carro encosta. Rebaixado, décadas de uso. O vidro escuro do passageiro desce. A mulher da esquina segue até ele. Debruça na porta com o vidro aberto. Rola um papo de 15 segundos. Ela tenta abrir a porta e não consegue. Fil pensou em voz baixa:
- Esse filho da puta vai aprontar com ela? Não gostou do preço? Idiota!
Mas não aprontou. Sem que revelasse seu rosto, ela entra e o carro sai. E FIl ficou, dentro do seu carro. De qualquer forma, a noite não acabou bem para ambos. Mas pelo menos ela teria uns trocados na carteira ao final dela. Mesmo que tivesse que vender toda sua crença no ser humano. Crença essa que, às vezes, vale menos do que esperamos. Ele mesmo perdera a sua sem ganhar nada em troca.
Como estava fora do seu habitual horário de dormir, pegou uma pequena garrafa no porta-luvas, daquelas que cabem no bolso. Estava cheia de conhaque barato. Tomou tudo em praticamente dois goles. Isso ajudaria a dormir. Ou pelo menos o apagaria por algumas horas. Travou as portas, desceu o banco e ficaria por ali mesmo, se protegendo do frio enrolado aos tapetes do carro e às vagas lembranças.

(continuação aqui)

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