A referência é um caco

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
Tudo o que buscamos na vida é sermos referências em algo ou para alguém.

Seja no trabalho, nos estudos, no lazer, seja entre os que te cercam, sempre pretendemos marcar algo em alguém ou em alguma coisa. Por mais que a vida passe sem grandes transformações e conquistas e emoções, ainda assim esperamos que em algum período da nossa existência tenhamos marcado as páginas de alguém. Que seja em uma mera nota de rodapé, mas que haja uma leve referência ao nosso nome, independente do virar dos anos.

Há uma lembrança minha de adolescência que me vem à cabeça frequentemente quando fecho os olhos: eu fui goleiro de futebol de salão da minha classe da oitava séria ao terceiro colegial. E pela primeira vez na minha vida eu era bom em algo. Não só era como me sentia bom. Enforcava aula para jogar por outras classes, sempre que precisavam de alguém para “catar no gol” me chamavam. Jogava de bota e jeans, de moletom e sandália. Mas jogava.

E toda vez que me recordo desse período, lembro-me de uma defesa espalmada no ângulo depois de um chute à queima-roupa. Plástica, bonita, sonora, daquelas que te fazem se levantar do chão olhando em volta e dizendo: eu sou foda!

Em algo besta, pequeno e temporal eu fui uma referência.

Ainda vejo vestígios desse cara foda. Vejo em uma bola bem encaçapada no bilhar e que extrai a admiração de quem assistiu. Em uma frase bem aplicada em meio a estrofes e estrofes pretensas de um poema e que extrai de quem leu um “puta que pariu”. Em um sorriso mágico extraído através de um simples presente feito por mim e que tinha a clara intenção de causar isso em quem sorriu. Em uma argumentação bem elaborada em meio a uma discussão e que extrai o silêncio do debatedor oponente.

Tudo isso eu faço porque sei que sou foda em algumas coisas.
Coisas que não conheço ninguém que possa fazer igual.
Melhor, sim... mas igual, não.

Só que isso não muda muito as coisas por aqui. O fato de ser foda deveria me tirar algumas sensações, mas não tira. Saber que sou foda apenas piora. É pretenso, é egolatria, é umbiguismo, chame como quiser. Mas sei que sou foda e isso não me faz melhor ou pior que ninguém. Apenas me faz diferente. Porque me sinto assim: diferente.

Sou o único filho homem dos meus pais. Sou o que dorme pouco e pensa muito e viaja demais. Sou o arrogante, sou o holograma, sou o que não existe. Já fui o primeiro beijo de alguém. Já fui o primeiro sexo de alguém. Já fui o primeiro namorado. Já fui o primeiro marido e o primeiro divórcio. Nunca fui o primeiro amor nem nunca fui o único amor de alguém. Talvez nunca consiga sequer ser o último amor de alguém. Não me entrego ao trabalho com a mesma dedicação com que me entrego a alguém. São e foram minhas referências.

Não vou construir casas, pois casas não fazem lares. Não erguerei paredes, pois paredes não seguram sentimentos. Fiz dos meus conceitos meu templo e neles me abrigo. E os reformo sem que precise mudá-los.

E hoje estou assim: perdido e sem referências para saber qual referência sou hoje. Não consigo escrever, não consigo pensar em nada muito foda. Estou comum, estou banalizado, estou normalizado. Só que preciso voltar a me sentir foda.

Porque ser referência é uma maneira de enganarmos a morte. E quando essa vadia vir me buscar e trouxer o alívio para este inferno que é viver dentro da minha pele, não conseguirá recolher todos os cacos que soltei por aí e por aqui.

Só preciso saber quais são esses.

1 comentários:

  1. Anônimo disse...
  2. Querer ser padrão e normal está fora do alcance de alguns seres nesta terra.
    Talvez não seja a melhor posição estar desconfortável com o que a gente é, mas é a tal história de abocanhar a vida, não é?
    A gente se sente normalizado, enquadrado num sistema, mas somos Matrix, baby. O nosso mundo não existe mesmo.
    Muitos não entendem essa nossa inquietação que parece preguiçosa, essa nossa revolta silenciosa, que só mostra o descontentamento e cara feia dela pra nós mesmos. Muitos conhecem essa luta, esse buraco interno, mas preferem abrir um livro de auto-ajuda e recita-lo mentalmente... Isso conforta alguns... não a nós.
    Não somos melhores por isso, somos diferentes, queremos degustar da dor da existência.
    Isso também não nos faz coitados e sofredores, como muitos podem achar, nos faz fortes. Te faz forte em querer ver a dor da vida, sentir o medo, o ódio, a raiva rasgando, pois só com essa abertura de ver a vida abertamente também conseguimos sentir toda a graça e viver o Amor, o afeto, o respeito, a fidelidade e a entrega PLENAMENTE.

    Você é referência, você é foda em muitas coisas e algumas delas só eu conheço de forma plena.

    ;)

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