#ContosDoOgro: O dia em que incriminei meu pai

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:

Foi quando um estampido na rua o fez correr pra fora do bar, em desespero. Em meio a gritaria e o corre-corre dos populares, ele não acreditava no que estava olhando. E tudo aquilo causado por ele.
Na manhã daquele mesmo dia, ele acordou sem nem ter dormido. Levantou-se do sofá e correu para o mesmo cenário onde uma tragédia havia caído em seu colo dois dias antes. Naquela manhã, ele estaria decidindo a vida de seu pai e não fora lhe dadas opções nem alternativas nem chances de correr daquele inferno.
Foi assim: na terça-feira, seu pai discutiu com um bêbado ao tentar fechar o bar. Não se sabe direito como, mas o final da discussão um pedaço de garrafa acabou atravessando a garganta do bêbado, que morreu no meio da calçada após se arrastar agonizando para fora do estabelecimento.
Agora corta para o dia seguinte: um tribunal decidiu que quem faria o relatório do crime seria justamente o filho do acusado. E que o julgamento se daria no dia seguinte, em frente ao mesmo bar. Sim, não há muitas informações sobre o motivo dessa decisão. Sabia-se apenas que já estava tomada e ele deveria ser o relator daquele crime. Sim: naquelas poucas horas que restava do dia, ele decidiria o futuro de seu pai.
Corta de novo agora, para a manhã do julgamento. Aquela manhã em que ele acordou sem nem ter dormido. Ao chegar ao bar, seu pai o chama para conversar, acompanhado de um advogado qualquer. Ambos trazem uma expressão séria e preocupada. Enquanto se dirigem para a sombra de uma árvores, todo o circo é montado na rua, em um esquema que mais parecia aparato de desfile beneficente de interior: várias mesas unidas e preparadas toscamente, formando uma grande mesa forrada por tecidos que disfarçavam as emendas e que entrincheiravam sete cadeiras que logo mais receberiam sete pessoas daquela comunidade para decidirem o que fariam com a vida daquele comerciante que tirou a vida de um bêbado dois dias antes. Sob a árvore, os três conversavam, mas apenas o pai falava enquanto olhava para o filho sentado na sarjeta:
- Você vai mudar seu relatório. Vai dizer que estava confuso e que não tinha muitas informações. Caso contrário, eu irei pra cadeia!
A imprensa chegava com a mesma sede com que se banhava naquela surreal decisão de um tribunal de interior que decidiu deixar sob incumbência de um filho a decisão acerca do futuro de seu pai que havia matado um homem. Parecia roteiro de filme baseado em histórias do passado. Tudo aquilo havia causado uma grande comoção e repercussão popular. Mas estranhamente o cenário local no dia mais se assemelhava a um desfile beneficente de interior, mesmo. Quase uma quermesse adaptada às pressas.
Ao ouvir seu pai falando aquelas palavras com desespero nos olhos, ele se levantou e desceu. Precisava ouvir sua mãe, que morava há duas quadras do local. Ao se levantar, passou pela casa que se avizinha ao bar. Nessa casa, mora sua irmã mais velha. Ao passar em frente, apenas escutou um choro e ganhou um olhar de reprovação ao olhar para dentro da garagem.
Alguns minutos depois, estava na casa de sua mãe. Um caminhão de bebidas estava parado em frente, pois precisavam entregar as caixas de cerveja encomendadas, mas não havia condições de fazê-la no local determinado, já que o local determinado agora era um circo intransitável. O motorista e o ajudante reclamavam do horário atrasado e de como aquele contratempo faria com que mudassem todo seu itinerário.
Sem dar muito mais atenção para o diálogo daqueles que ignoravam seu desespero, ele chega sem saber como olhar para sua mãe, que o recebe com um semblante preocupado mas ao mesmo tempo complacente:
- O que faço, mãe?
- Não sei, filho... não sei.
Sem falar mais nada, ela o abraça. Mas eu seus olhos dizem que seu pai poderá ser preso e que isso mudaria as vidas de todos. O desespero se reflete na lágrima que desce e que logo é dissipada ao cair. Enquanto isso, os entregadores de bebida descarregam as caixas na garagem, ignorando os dois ali, abraçados próximos ao portão.
Corta agora para o bar: a votação está em 2 a 0. Três votos pelo relatório do filho, que incriminava o pai. Ao que isso indica, ele não acatou a decisão do pai de rever o que escreveu. E isso mostra que o que escreveu incrimina o pai. A cada voto, uma salva de urros e falatórios tomava a rua. E ele não entendia como tudo aquilo havia ganhado tal grandiosidade. Era apenas um bêbado sem família que havia sido assassinado por algum motivo. Talvez tivesse ameaçado o dono do bar, talvez tivesse sido a legítima defesa que a defesa defendia. O motivo do crime não estava muito óbvio, assim como o motivo pelo qual optou por acusar o pai.
Enquanto esperava na calçada pelo terceiro voto, vê descendo pela rua um irmão de seu pai que há muito havia brigado com ele. Os irmãos não se falavam há anos, o que ele queria ali naquela hora? Quando o tio se aproximou, tentou uma gracinha para amenizar a resistência visível do sobrinho. Não deu certo e foi completamente ignorado. O filho estava com um estranho nó na garganta e abalado demais para lidar com outra coisa que não fosse aquilo.
O pai, dentro do bar, caminhava de fora para dentro e de dentro para fora repetidas vezes. Trajava sua tradicional camiseta regata, bermuda e chinelo. Mas o bar estava vazio, apenas ele caminhava de dentro para fora, de fora para dentro. E apenas seu filho também tinha acesso ao local, mas mal o fazia.
O terceiro voto foi de uma mulher jovem demais para entender o que acontecia. E ela votou pelo relatório do filho também. Placar de 3 a 0. Mais um e todo o destino daquela família seria mudado. Corta de novo, agora para a votação empatando em 3 a 3. O penúltimo voto foi de um primo do filho, um sobrinho do pai. A proporção da surrealidade ultrapassou alguns limites agora: no júri onde um filho fora praticamente forçado a acusar o pai, um outro parente estava o julgando. E o julgou inocente.
Os olhos dos outros familiares estava arregalados demais, esperando o sétimo e último voto. Enquanto o falatório amenizava, a filha mais velha não olhava para o irmão. A irmã mais nova estava com a mãe em casa, ambas não suportariam presenciar aquele inferno circense surreal. Enquanto o silêncio voltava a cortar o barulho da rua, o marido da irmã mais velha chama o sogro para fora. O cunhado do filho estava acompanhado do advogado de defesa. Conversavam seriamente com o pai, de forma reservada e baixa, encostados em um poste.
O filho estava dentro do bar. Agoniado, não sabe o que pensar. Nem o que sentir. Tudo era sem sentido, não havia uma explicação racional ou lógica que explicasse o que estava acontecendo. Era como se ele tivesse sido jogado do nada naquele absurdo. Era como se em um domingo tivesse assistido à tarde ao tradicional jogo dominical com seu pai, falado algumas besteiras triviais e, no segundo seguinte, estivesse ali, dentro daquele bar, esperando o último voto que livraria ou não seu pai da cadeia. E tudo pesava sobre seus ombros. Como isso foi acontecer?
Do lado de fora, uma buzina de caminhão corta o silêncio que cortou o falatório. Eram os entregadores de bebida querendo passar pela rua tomada de gente e que a impedia de seguirem o itinerário atrasado. O motor ligado rangia a cada acelerada nervosa.
Antes de ir ao encontro do genro, o pai chamou o filho para dentro e apenas os dois conversavam em pé ao lado da mesa de bilhar. O pano era vinho, recém-trocado. O pai coloca a mão nos ombros do filho e sorri ao olharem para a mesa:
- Foi você quem pediu por essa cor de pano, né? Eu gostei, apesar de relutar em aceitar sua sugestão... Ficou bom, não?
O filho começa a chorar e olha para o pai sem dizer nada. Não sabia como pedir desculpas, nem como se livrar daquilo. Trazia muito medo no olhar, medo esse que encontrava respaldo no do pai. Com os olhos mareados, puxa o filho pela nuca e lhe dá um beijo na testa antes de sair para atender o chamado do genro:
- Apenas me prometa que não vai deixar o bar fechado.
E assim saiu. Agora o filho estava lá dentro, andando de um lado para o outro, sem saber o que esperar do último voto. O silêncio e o frio lá dentro eram absurdamente insanos. Tentou beber algo, mas nada descia além das lágrimas. Foi quando um estampido na rua o fez correr pra fora do bar, em desespero. Em meio a gritaria e o corre-corre dos populares, ele não acreditava no que estava olhando. E tudo aquilo causado por ele.

E foi quando eu acordei. O estampido no sonho me acordou. E naquele desespero de entender um sonho tão surreal, tentei voltar correndo a dormir. Sabe quando você ainda está sob impacto do sonho e precisa saber como terminou? Ainda mais nesse momento tão crucial da história? Pois bem... e como sempre, a gente nunca consegue voltar. Apenas pega, de olhos forçadamente fechados, vestígios do que sonhou.
O estampido lembrava um tiro? O genro e o advogado já previam a condenação pelo sétimo jurado e assim resolveram dar uma arma ao acusado? E o que ele fez? Se matou ou matou o jurado? Ou apenas era o barulho do caminhão passando com pressa pelo local depois que todos desbloquearam a rua ao ouvir o veredito que inocentava o pai?
Não sei.
Só sei que acordei assim, assustado, sem entender direito o porquê sonhei isso. E de forma confusa, com tantos cortes de cena e sem explicações. Levantei-me do sofá e fui para a cama, não sem antes escrever este surreal sonho às 6h da manhã.
Mas foi assim o dia em que acusei meu pai.
                                                  

2 comentários:

  1. Evelyn Paparelli disse...
  2. Por um momento pensei estar lendo um dos livros de Agatha Christie, tão real e envolvente quanto. Que sonho maluco hein? Bem que voce poderia escrever o final, 2 ou 3 opçoes diferentes para que seus leitores possam votar pelo melho. Que tal, Rick Castle?

  3. Camila Silveira disse...
  4. Preciso falar que eu quase infartei aqui com a história e esses personagens???

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