Foi quando
um estampido na rua o fez correr pra fora do bar, em desespero. Em meio a
gritaria e o corre-corre dos populares, ele não acreditava no que estava
olhando. E tudo aquilo causado por ele.
Na manhã
daquele mesmo dia, ele acordou sem nem ter dormido. Levantou-se do sofá e
correu para o mesmo cenário onde uma tragédia havia caído em seu colo dois dias
antes. Naquela manhã, ele estaria decidindo a vida de seu pai e não fora lhe
dadas opções nem alternativas nem chances de correr daquele inferno.
Foi assim:
na terça-feira, seu pai discutiu com um bêbado ao tentar fechar o bar. Não se
sabe direito como, mas o final da discussão um pedaço de garrafa acabou atravessando a garganta do bêbado, que morreu no meio da calçada após se
arrastar agonizando para fora do estabelecimento.
Agora corta
para o dia seguinte: um tribunal decidiu que quem faria o relatório do crime
seria justamente o filho do acusado. E que o julgamento se daria no dia
seguinte, em frente ao mesmo bar. Sim, não há muitas informações sobre o motivo
dessa decisão. Sabia-se apenas que já estava tomada e ele deveria ser o relator
daquele crime. Sim: naquelas poucas horas que restava do dia, ele decidiria o
futuro de seu pai.
Corta de
novo agora, para a manhã do julgamento. Aquela manhã em que ele acordou sem nem
ter dormido. Ao chegar ao bar, seu pai o chama para conversar, acompanhado de
um advogado qualquer. Ambos trazem uma expressão séria e preocupada. Enquanto
se dirigem para a sombra de uma árvores, todo o circo é montado na rua, em um
esquema que mais parecia aparato de desfile beneficente de interior: várias mesas
unidas e preparadas toscamente, formando uma grande mesa forrada por tecidos
que disfarçavam as emendas e que entrincheiravam sete cadeiras que logo mais
receberiam sete pessoas daquela comunidade para decidirem o que fariam com a
vida daquele comerciante que tirou a vida de um bêbado dois dias antes. Sob a
árvore, os três conversavam, mas apenas o pai falava enquanto olhava para o
filho sentado na sarjeta:
- Você vai mudar seu relatório. Vai dizer
que estava confuso e que não tinha muitas informações. Caso contrário, eu irei
pra cadeia!
A imprensa
chegava com a mesma sede com que se banhava naquela surreal decisão de um
tribunal de interior que decidiu deixar sob incumbência de um filho a decisão acerca
do futuro de seu pai que havia matado um homem. Parecia roteiro de filme
baseado em histórias do passado. Tudo aquilo havia causado uma grande comoção e
repercussão popular. Mas estranhamente o cenário local no dia mais se
assemelhava a um desfile beneficente de interior, mesmo. Quase uma quermesse
adaptada às pressas.
Ao ouvir
seu pai falando aquelas palavras com desespero nos olhos, ele se levantou e
desceu. Precisava ouvir sua mãe, que morava há duas quadras do local. Ao se
levantar, passou pela casa que se avizinha ao bar. Nessa casa, mora sua irmã
mais velha. Ao passar em frente, apenas escutou um choro e ganhou um olhar de
reprovação ao olhar para dentro da garagem.
Alguns
minutos depois, estava na casa de sua mãe. Um caminhão de bebidas estava parado
em frente, pois precisavam entregar as caixas de cerveja encomendadas, mas não
havia condições de fazê-la no local determinado, já que o local determinado
agora era um circo intransitável. O motorista e o ajudante reclamavam do horário
atrasado e de como aquele contratempo faria com que mudassem todo seu itinerário.
Sem dar
muito mais atenção para o diálogo daqueles que ignoravam seu desespero, ele
chega sem saber como olhar para sua mãe, que o recebe com um semblante
preocupado mas ao mesmo tempo complacente:
- O que faço, mãe?
- Não sei, filho... não sei.
Sem falar
mais nada, ela o abraça. Mas eu seus olhos dizem que seu pai poderá ser preso e
que isso mudaria as vidas de todos. O desespero se reflete na lágrima que desce
e que logo é dissipada ao cair. Enquanto isso, os entregadores de bebida
descarregam as caixas na garagem, ignorando os dois ali, abraçados próximos ao portão.
Corta agora
para o bar: a votação está em 2 a 0. Três votos pelo relatório do filho, que
incriminava o pai. Ao que isso indica, ele não acatou a decisão do pai de rever o
que escreveu. E isso mostra que o que escreveu incrimina o pai. A cada voto,
uma salva de urros e falatórios tomava a rua. E ele não entendia como tudo
aquilo havia ganhado tal grandiosidade. Era apenas um bêbado sem família que
havia sido assassinado por algum motivo. Talvez tivesse ameaçado o dono do bar,
talvez tivesse sido a legítima defesa que a defesa defendia. O motivo do crime
não estava muito óbvio, assim como o motivo pelo qual optou por acusar o pai.
Enquanto
esperava na calçada pelo terceiro voto, vê descendo pela rua um irmão de seu
pai que há muito havia brigado com ele. Os irmãos não se falavam há anos, o que
ele queria ali naquela hora? Quando o tio se aproximou, tentou uma gracinha
para amenizar a resistência visível do sobrinho. Não deu certo e foi
completamente ignorado. O filho estava com um estranho nó na garganta e abalado
demais para lidar com outra coisa que não fosse aquilo.
O pai,
dentro do bar, caminhava de fora para dentro e de dentro para fora repetidas
vezes. Trajava sua tradicional camiseta regata, bermuda e chinelo. Mas o bar
estava vazio, apenas ele caminhava de dentro para fora, de fora para dentro. E
apenas seu filho também tinha acesso ao local, mas mal o fazia.
O terceiro
voto foi de uma mulher jovem demais para entender o que acontecia. E ela votou
pelo relatório do filho também. Placar de 3 a 0. Mais um e todo o destino
daquela família seria mudado. Corta de novo, agora para a votação empatando em
3 a 3. O penúltimo voto foi de um primo do filho, um sobrinho do pai. A
proporção da surrealidade ultrapassou alguns limites agora: no júri onde um
filho fora praticamente forçado a acusar o pai, um outro parente estava o
julgando. E o julgou inocente.
Os olhos
dos outros familiares estava arregalados demais, esperando o sétimo e último
voto. Enquanto o falatório amenizava, a filha mais velha não olhava para o
irmão. A irmã mais nova estava com a mãe em casa, ambas não suportariam
presenciar aquele inferno circense surreal. Enquanto o silêncio voltava a
cortar o barulho da rua, o marido da irmã mais velha chama o sogro para fora. O
cunhado do filho estava acompanhado do advogado de defesa. Conversavam
seriamente com o pai, de forma reservada e baixa, encostados em um poste.
O filho estava
dentro do bar. Agoniado, não sabe o que pensar. Nem o que sentir. Tudo era sem
sentido, não havia uma explicação racional ou lógica que explicasse o que
estava acontecendo. Era como se ele tivesse sido jogado do nada naquele
absurdo. Era como se em um domingo tivesse assistido à tarde ao tradicional jogo
dominical com seu pai, falado algumas besteiras triviais e, no segundo seguinte,
estivesse ali, dentro daquele bar, esperando o último voto que livraria ou não
seu pai da cadeia. E tudo pesava sobre seus ombros. Como isso foi acontecer?
Do lado de
fora, uma buzina de caminhão corta o silêncio que cortou o falatório. Eram os
entregadores de bebida querendo passar pela rua tomada de gente e que a impedia
de seguirem o itinerário atrasado. O motor ligado rangia a cada acelerada
nervosa.
Antes de ir
ao encontro do genro, o pai chamou o filho para dentro e apenas os dois
conversavam em pé ao lado da mesa de bilhar. O pano era vinho, recém-trocado. O
pai coloca a mão nos ombros do filho e sorri ao olharem para a mesa:
- Foi você quem pediu por essa cor de pano,
né? Eu gostei, apesar de relutar em aceitar sua sugestão... Ficou bom, não?
O filho
começa a chorar e olha para o pai sem dizer nada. Não sabia como pedir
desculpas, nem como se livrar daquilo. Trazia muito medo no olhar, medo esse
que encontrava respaldo no do pai. Com os olhos mareados, puxa o filho pela
nuca e lhe dá um beijo na testa antes de sair para atender o chamado do genro:
- Apenas me prometa que não vai deixar o bar
fechado.
E assim
saiu. Agora o filho estava lá dentro, andando de um lado para o outro, sem
saber o que esperar do último voto. O silêncio e o frio lá dentro eram
absurdamente insanos. Tentou beber algo, mas nada descia além das lágrimas. Foi
quando um estampido na rua o fez correr pra fora do bar, em desespero. Em meio
a gritaria e o corre-corre dos populares, ele não acreditava no que estava
olhando. E tudo aquilo causado por ele.
E foi
quando eu acordei. O estampido no sonho me acordou. E naquele desespero de
entender um sonho tão surreal, tentei voltar correndo a dormir. Sabe quando
você ainda está sob impacto do sonho e precisa saber como terminou? Ainda mais
nesse momento tão crucial da história? Pois bem... e como sempre, a gente nunca
consegue voltar. Apenas pega, de olhos forçadamente fechados, vestígios do que
sonhou.
O estampido
lembrava um tiro? O genro e o advogado já previam a condenação pelo sétimo
jurado e assim resolveram dar uma arma ao acusado? E o que ele fez? Se matou ou
matou o jurado? Ou apenas era o barulho do caminhão passando com pressa pelo
local depois que todos desbloquearam a rua ao ouvir o veredito que inocentava o
pai?
Não sei.
Só sei que
acordei assim, assustado, sem entender direito o porquê sonhei isso. E de forma
confusa, com tantos cortes de cena e sem explicações. Levantei-me do sofá e fui
para a cama, não sem antes escrever este surreal sonho às 6h da manhã.
Mas foi
assim o dia em que acusei meu pai.
2 comentários:
Por um momento pensei estar lendo um dos livros de Agatha Christie, tão real e envolvente quanto. Que sonho maluco hein? Bem que voce poderia escrever o final, 2 ou 3 opçoes diferentes para que seus leitores possam votar pelo melho. Que tal, Rick Castle?
Preciso falar que eu quase infartei aqui com a história e esses personagens???
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