Noites em claro, dias escuros

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
A única coisa real é a dor.

O resto ilude, superestima, faz sentir o que não é real. A dor não: ela te subestima, te dá o gosto amargo e aguado da realidade. Um ranço que percorre a garganta e dói no estômago. A ilusão é doce e insossa como um algodão doce, que se dissipa no pequeno abocanhar faminto, te deixando com a falsa sensação de saciedade.

O que segura um homem quando seus joelhos travam para que seu corpo não caia durante o banho, o colocando novamente na mesma situação de misturar as lágrimas com a água que cai, se afogando sem conseguir se levantar? O que mantém um homem em pé quando tudo o que ele precisa é de apenas uma mão tirando um pedaço de esperança de algum lugar e que o ajuda a acordar no dia seguinte, a dormir no dia que se encerra?

O que faz um homem não dobrar os joelhos e tentar se manter em pé é justamente a quantidade de dor que ele já sentiu na vida. Ou ainda: o quanto de dor ele ainda sente e sentirá. É a falsa esperança de que uma hora sairá desse inferno é o que o faz acordar, tentar dormir, e depois de novo se levantar. Quanto mais dor, mais esperança de sair dela ele possui.

Isso é o que te faz controlar a coragem de acabar com tudo. É o que te mantém longe das garrafas, dos copos, dos tragos. Tudo isso transforma covardes em heróis. E tudo o que você menos precisa é de coragem nessas horas. É o que mantém pulsos fechados e gargantas respirando quando a vontade é apenas de acabar com tudo de uma vez.

Mas ela o detém porque o tem.

Quanto mais a tenta afogar, mais fixa no fundo a âncora que te entrava. É assim que funciona a dor: quanto mais rasa, mais livre dela poderá ficar. Mas há sempre um idiota que busca compreendê-la e conhecê-la. Nessa busca pela realidade, nesse vício pela realidade, ambos afundam. Mas a dor sobrevive desse sufocamento. Ele não.

E a impressão que passa é a de que quanto mais o homem conhece o outro lado da cerca, mais alta ela fica. Quanto mais o gosto do alívio e da pseudo-felicidade ele sente, maior fica o muro para voltar a senti-los novamente. E a vida, essa filha da puta, parece se divertir dando a esse idiota o gosto daquilo que ele nunca poderá ter efetivamente. É como se colocasse um sorvete em sua boca em pleno verão, fazendo-o esquecer por um tempo do inverno... Mas subitamente o sorvete derrete, deixando apenas a lembrança de como é sentir-se aliviado do calor, deixando apenas o medo da volta eminente do frio.

A dor recebe o iludido de volta. Olha para a cara dele e diz: “você achou mesmo que poderia?”. E ele realmente achou. Respirou um tempo, sentiu a brisa da paz tocar-lhe a face, pôde um dia vislumbrar o que seria uma vida diferente da que lhe foi imposta.

Mas durou o tempo de um sonho.
E sonhos duram menos do que podemos esperar.

Sabe aquela coisa de alguém se afogando e chega outro para ajudar e ambos se afogam porque o primeiro se agarra ao segundo como se agarrasse a única chance de respirar?

Talvez isso seja o amor: você se jogar em resgate de alguém, sabendo que ambos poderão sucumbir ao desespero do outro em busca da vida. É entender que o outro se agarra a você não para te afundar junto, mas por querer também sobreviver ao mar da vida. E saber que não há intenção mútua de se afogarem. Porque você até suporta engolir água pelo outro, mas não pode tolerar que o mesmo tenha intenção de te afundar a cabeça e cortar seu ar.

Talvez amor seja isso: mesmo cansado de bater as pernas, mesmo exausto de tanto nadar, mesmo quase desistindo do respirar, você permite que alguém tente te resgatar, mesmo sabendo que tal tentativa irá causar ferimentos no outro. Você não desiste porque o outro ainda não desistiu de você. E ambos entenderão que as marcas causadas não foram intencionais. Foram circunstanciais e assim as suportarão. Porque você até suporta se machucar, mas não pode tolerar a reincidência de machucados intencionais.

Talvez amar seja assim: aceitamos cair nesse mar, correndo o risco de nos afogar e desistir de tudo, mas não queremos ver quem amamos se jogar da mesma plataforma com a mesma intenção. Porque sabemos o que leva alguém a se jogar. Há uma estranha sintonia na dor que nos faz enxergar o outro de uma forma como nós mesmos não nos enxergamos. Muito menos aceitamos ver esse alguém ser jogado. Porque o amor até aceita rompantes de autoflagelo, mas não tolera os açoites sádicos alheios.

Para mim, o amor é o coletivo de sentimentos e, como tal, se arma de dois deles para salvar os náufragos desesperados por ar, mas que acham já desistiram de respirar. Penso que o amor é como aquelas boias que crianças usam nos braços para aprender a nadar. Uma boia se chama respeito, a outra lealdade. Sem uma, a outra sucumbe ao peso do corpo. E sem ambas, não há como seguir boiando. Nem como aprender a nadar.

Mas tudo dura o tempo de um sonho.
E sonhos duram menos do que podemos esperar.

E é nessa hora que a dor te acolhe em sua cama de espinhos, te cobre com sua manta de metal incandescente, te afaga com suas ásperas mãos e diz, com aquela voz rouca e embargada: “eu estou aqui”. Lá no fundo, ancorada, te prendendo o ar enquanto olha para cima e vê a imagem se turvando daquele alguém que cometeu a heresia de tentar te salvar, segurou sua cabeça acima da superfície e te fez sentir como é respirar.

Enquanto afunda, se lembra do que é viver sabendo que hoje será sempre o último dia que terá daquela pessoa. Conviveu com a certeza de que amanhã não a teria mais. E fechou os olhos para não mais perdê-la de vista.

Desesperado, você tenta sair, mas já está preso novamente. De novo. Outra vez. E estranhamente sente que a lealdade da dor para com você é eterna. Ela nunca te abandonará nem nunca te iludirá. Ela apenas o quer assim, miserável como sempre.

Porque, no final, a única coisa real é a dor.


1 comentários:

  1. Luana Bertholino disse...
  2. Talvez a dor seja mais fiel do que o amor. Pelo menos pra mim.
    Ela sempre me reencontra, nas horas que menos espero, e me corta, me abraça, me acolhe, e me enlouquece.
    Parabéns pelo texto.

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