Escravizados por aquilo que nos diferencia

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
Era um velho homem amargo
e em grande parte de sua vida ele foi assim.
Não se lembra quando foi que a vida
o transformou nisso.

Desde então, tem sido
uma constante batalha.
Ele sabia que não poderia vencer,
mas seguiu lutando.
Contra ele.

Ele já era um velho homem cansado.
E agora esse velho homem, amargo e cansado,
se vê prostrado em frente a uma lápide.
Sua lápide.
Tentava imaginar
o que nela escreveria.

Passou-lhe pela cabeça
as noites em que gritou
com medo de que
ninguém estivesse
escutando.
Escutavam,
mas não
ouviam.

Dizem que temos
uma boca, dois olhos e dois ouvidos
para ouvirmos mais, vermos mais,
falarmos menos.
Mas ele tinha duas mãos.
Por isso escrevia mais
do que falava.

Mas andava bloqueado para escrever.
A lápide em sua frente em branco
e em branco ela permanecia.

Talvez o cansaço o bloqueou.
Andava cansado.
Fisicamente cansado.
Moralmente estafado.
Emocionalmente devastado.
O peso do mundo nas costas
é muito melhor quando sentido
apenas filosoficamente
e literariamente.
Quando cai pro fisicamente,
perde a graça.

“Qual valor de uma única lágrima?”,
ponderava ele, ao sentir
a chuva que começava a cercá-lo.
Imaginou que os deuses
também estivessem chorando.

Quanto peso as lágrimas
conseguem levar cada vez que caem
dos olhos que insistem
em ver a realidade
exposta tal como vísceras
navalhadas?

Ali estava ele, prestes a ter paz.
E bloqueado. E cansado. E amargo.
Acreditou que o cansaço
pudesse ser da busca por
um pouco de paz.
Mas buscar paz
é utópico demais.

Buscar a paz é preparar-se
para uma guerra constante.
Seja a busca pela paz
seja a busca pela felicidade.
Felicidade é como mijar
em banheiro público:
se você quer usar,
apenas tenha cuidado
para não respingar essa porra
no vizinho.

E ele tinha as pernas
respingadas de lama
causada pela chuva
que encharcava a terra
que o cobriria em breve.

Lá estava ele,
um velho amargo e cansado
e bloqueado e molhado.
E sozinho.
Ninguém compareceria
à estréia de sua lápide e
logo pensou em deixá-la
assim, vazia.

“Fique sem procurar
as pessoas por um tempo
e se assustará com a
quantidade de falta
que você não faz a elas”,
sussurrou enquanto
olhava para seu reflexo
distorcido na poça de água
acumulada pela chuva
em cima de sua morada eterna.

Tomou um carvão úmido
de um braseiro ao lado,
apagado pelas lágrima,
ajoelhou-se com dificuldade
e empunhou aquele
toco preto molhado
como quem entrega numa bandeja
a alma queimada por chamas
acesas por outros.

E ali ele a entregou.

Levantou-se num último fôlego
e disse, ao passar por mim,
que o assistia de longe:
“São tempos enviados para testar você.
Se há algo errado com o que vê,
tome todas as dores para si.
Auto-piedade não é
boa companhia.
Miséria, sim.
Prepara-se para morrer
cheio de arrependimentos
e vazio de certezas.
Acostuma-te ao fato
de que nunca irá ver
aquilo que você poderia ter sido.
O que sentia não sentirá mais.
O que sabia não saberá mais.
Eu já não me importo mais.”

Limpou a pigarro da garganta,
deu-me seu chapéu e se afastou.
Fui até sua lápide, mas não pude ler
o que ele havia escrito.
A chuva lavou o carvão.

Comecei a pensar
no que escreveria na minha.
Ajoelhado, botei o chapéu
e sussurrei à poça que me refletia:
“Esse velho maldito
sou eu.”

E o filho da puta ria
ao me observar de longe.

3 comentários:

  1. Carol Viana disse...
  2. Tão lindo quanto violento. Tão sagaz quanto melancólico.Tão estarrecedor quanto incrível!
    Quantas vezes não nos deparamos como sendo outros seres a nos observar?
    Quanto de nós mesmos conseguimos enxergar no outro?
    Quanto daquele outro conseguimos enxergar que somos nós mesmos?
    Quando conseguimos enxergar esse "dialógo" entre nossos "eus"?
    E a pergunta que nunca cala: como você consegue imprimir beleza na dor?
    PRECISO ler de novo... e muitas vezes mais...
    beijos

  3. Paula Lopes disse...
  4. Um dos mais longos que vi por aqui, mas com certeza o que mais me prendeu e fez querer chegar ao fim.

    Quis chegar logo ao fim pra saber o que aconteceria. Acho que muitas vezes é como me sinto em relação à vida, ao futuro, ao que vem pela frente...

    E quanto mais cheguei perto do fim do seu texto, mais notei que não importa. Os arrependimentos e incertezas sempre estarão lá.


    Sei lá...

  5. Anônimo disse...
  6. Il semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.

    - Daniel

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