- Você pode se surpreender com
o quanto sua vida muda em um ano...
Foi a primeira coisa que ouvi
daquele homem ao fundo do bar, procurando as sombras das luzes apagadas para
seguir encarando seu copo meio sujo e meio vazio. É sempre assim: nas penumbras
de um boteco nos escondemos de nós mesmos, cansados de nos procurar.
Eu estava sentado ao seu lado
há quase meia hora e apenas naquele momento o notei. Talvez tenha percebido
minhas poucas palavras com o dono do bar, que me servia apenas quando erguia
meus olhos em sua direção, esperando que enchesse meu copo. Foi assim que o
homem das sombras também se dirigiu àquele que estava do lado de dentro do
balcão.
- Já não lembro mais o que é
não ter a vida mudada – respondi sem me prolongar.
- Talvez quem tenha mudado
seja você e não sua vida.
- As pessoas não mudam. Eu não
mudei. Talvez tenha me adaptado. Ou estivesse me adaptado quando as mudanças
chegaram. Mas a gente não muda. Eu não mudo. Você não muda. Nem aquele cara
limpando os copos muda. Tentamos acreditar nisso para tentar aceitar a vida.
- O que faz você acreditar
nisso? – me questionou sem que nos olhássemos.
- Minha vida justamente nesses
últimos doze meses que disse que posso me surpreender.
- Doze meses é o suficiente
pra construir muita coisa...
- Ou destruir o pouco
construído.
Nem me lembro como cheguei até
aquele bar. Um dos tantos dias em que a bebida é a única companhia mesmo não
sendo a melhor companheira. Precisava tirar o que me engasgava, vomitar em
alguma pia ou em algum pedaço de papel, transformando em palavras, parágrafos,
linhas, espaços.
- Essa destruição causou todas
essas marcas de tinta em sua pele? – indagou se referindo às minhas tatuagens.
- Apenas uma breve forma de
exteriorizar aquilo que não cabe mais em você. Há quem afirme que a dor do
momento ajuda a amenizar o tormento da espera, da chegada protelada. Eu apenas
quero evitar que os momentos se percam. É nisso que a vida se resume no final,
afinal: momentos.
Virei meu copo e coloquei
minha mão sobre o balcão enquanto a outra alcançava um cigarro de palha no
bolso da calça. Tinha começado a fumar aquela porcaria há poucas semanas e já
me tornado um viciado.
- Esta chave riscada em sua
mão é um exemplo disso? – apontou para minha tatuagem iluminada sobre o balcão.
- Sim. Abre o único lugar onde
já me senti seguro e confortável e normal nessa porra de mundo. Foi um
presente, assim pode-se dizer. A chave e o lugar ao qual ela dá acesso.
- E por que não volta para lá?
- Porque ainda não é hora.
Ainda não é hora.
- Talvez você nem tenha saído
de lá...
Foi a primeira vez que ele
conseguiu falar algo e sorrir ao mesmo tempo.
- É... talvez.
- E isso tem a ver com esses
dozes meses?
- É a causa dos dozes meses.
Essa foi a primeira vez que
falei algo e sorri ao mesmo tempo.
- Você já tentou fingir que
sua vida não existiu nesse ano que se passou desde então?
- Eu faço isso todos os dias
só pra conseguir sair da cama ou ir até ela: ignorar o dia, a semana, o ano, a
vida...
- Já tentou parar de beber?
- Começo a parar toda vez que
abro uma garrafa ou viro um gole... o que me leva a novos vícios ou tentativas
de afastar a necessidade de me machucar para me enganar que estou vivo.
- Ao menos conseguiu alguma
coisa que significasse?
- Acredito que sim. Muito mais
para os outros que talvez para mim.
Chamei o dono do bar para que
enchesse meu copo. O homem das sombras aproveitou o embalo e encheu o seu
também.
- E esses outros mereceram
isso que conseguiu para eles? – perguntou depois de virar seu copo.
- Se não mereceram, um dia
merecerão – respondi virando o meu.
- Então não há o que fazer
senão seguir tentando.
- Tentando o que?
- Seguir morrendo sem se
matar.
- Acho que já li isso em algum
lugar... – comentei.
- Foi você quem escreveu.
Olhei para ele tentando
identificá-lo, mas a sombra se pendurava sobre sua face, segurada pela aba de
um chapéu. Não sei como ele sabia daquilo, mas também já não fazia diferença.
- Isso foi na época em que
ainda conseguia escrever. Não acho que volte mais.
- Já tentou parar de tentar e
simplesmente voltar a escrever qualquer coisa? Não precisa ser o melhor poema
da sua vida ou a crônica mais espetacular que já escreveu...
- Quintana discordaria de
você.
- Quintana não está aqui para
beber com você.
- Quintana não beberia
comigo...
- Faz sentido. Preciso mijar.
E saiu. Olhei em volta e o bar
estava com apenas aquela velha meia dúzia de antigos clientes ancorados nos
mesmos lugares habituais, trocando as mesmas receitas de vida, reforçando as
velhas experiências vividas e se enganando que aquilo seria o suficiente para o
dia. Nunca era. Por isso voltavam, esperando ter motivos para voltar toda vez.
Acenei, pedi outra dose e segui fitando o nada, na profunda contemplação do
nada.
- O que te faria voltar a
escrever da forma como acha ideal? – voltou perguntando.
- O que te faria perguntar
menos? – respondi.
- O fechamento do bar.
- Isso está longe de
acontecer.
- Então vamos continuar mais
um pouco, conforme-se com isso.
- Talvez eu não seja um
escritor. Apenas saiba escrever. É diferente.
- Sim, faz diferença. Mas o
que o faria seguir sabendo escrever?
- Não sei. Sinceramente não
sei. Acordo me perguntando isso, tomo banho com essa dúvida, cago com essa
pergunta, trepo com essa questão, durmo com essa indagação. Não sei. O que me
faria voltar a escrever o que acho que devo escrever?
- Você é daqueles que só sabe
escrever quando está mal, quando está na pior, na miséria, com pena de si
mesmo, buscando maneiras de se machucar sempre para que a fonte não seque.
- Quem gosta de escrever e
vive para isso, o faz sempre nessas condições. Os que o fazem na alegria e na
felicidade e na leveza do ser viram palestrantes, pastores, padres,
conselheiros motivacionais. A vida é colorida e tudo vale a pena desde que se
tente ser feliz. Mas não fazem nada a não ser criarem novos bares, novas putas,
novos cornos, velhas ruas, velhas vidas. Nunca atingiremos esse grau pregado
por eles.
- E o que há de ser atingido,
então? – tornou a me perguntar.
- A realidade da vida que se
tem. É o que nós, que só sabemos escrever quando na merda, quando no
sofrimento, quando na miséria, trazemos. A complacência da realidade, sem a
consternação de que há muito mais a ser atingido além disso que temos.
- Mas há como conquistar bons
momentos. Afinal, você acabou de me afirmar que é disso que a vida se trata,
não? Por que não podemos viver em busca desses momentos e transformá-los em
agentes sobreviventes?
- Porque são raros, quase
inexistem.
- Mas se existissem aos
montes, perderiam a relevância, seriam banalizados, se tornariam regras e não
exceções. Se fossem corriqueiros, não estaríamos aqui, bebendo em busca das
memórias dos momentos já vividos, tentando perpetuá-los mesmo que no fundo de
uma garrafa.
Ao dizer isso, me pediu um
cigarro. Puxou o maço de cima do balcão, acendeu um, devolveu-o ao mesmo tempo
em que devolveu a fumaça no ar e uma pergunta, obviamente:
- E o que foi que ela te fez
de tão grave a ponto de te deixar tão cético assim?
- Eu já era assim antes dela.
Ela me deu justamente a exceção do momento, a certeza de que pode haver algo a
mais e que por isso mesmo vivemos assim: buscando, buscando e buscando.
- Então foi uma boa coisa.
- Foi a melhor coisa. Por isso
machucou mais. Por isso ecoou nesses dozes meses até aqui. Exatos doze meses.
Chega a ser engraçado como as datas se coincidem.
Em um outubro ela se foi. Em
outro ela voltou. Sem nunca ter ido. Mas mesmo quando foi, levou tudo, deixou
um rastro de conceitos rasgados, dúvidas folheadas. Seria complicado demais
explicar.
- Ainda acho que deveria
esquecer.
- Escrever é esquecer.
- Isso não é seu.
- Não. Fernando Pessoa.
- E é por isso, então, que
quer voltar tanto a escrever?
- Preciso esquecer para
conseguir lembrar. Para conseguir exorcizar. Para deixar como era.
- Vai te custar um balde de
lágrimas e muito drama e pouco resultado.
- Eu sei. Por isso temos isso
– e apontei para o copo vazio.
- Isso também tem um custo.
Talvez essa chave em suas mãos, até – serenamente revidou.
- Eu sei. Ela sabe. É apenas
minha muleta. A outra está na escrita. Quando uma falha me apoio na outra.
- Melhor ficar sentado, então.
Quando o bar estava para
fechar, me levantei para mijar. Ao voltar, o encontrei de costas para a porta,
acariciando seu copo e sua última dose. Encostei-me ao seu lado, acariciei o
meu copo e minha última dose.
- Talvez você devesse escrever
hoje – me recomendou.
- Talvez você devesse me dizer
quem é você.
Parou de acariciar o copo,
soltou um sorriso sacana e soberbo, virou sua dose, devolveu o copo no balcão,
limpou sua boca e saiu me dando as costas, parando ao meu lado e sussurrando no
meu ouvido:
- Eu sou esse ano perdido. Não
queira me nomear, não queira me conhecer, apenas saiba que um dia existi. Que
sumi tão sombriamente como na fumaça de um cigarro apagando em um bar qualquer.
Que rasguei como o primeiro gole depois de muito tempo sóbrio. Não me nomeie,
não me esqueça, apenas me deixe ir. Haverá sempre outro bar e outro como eu nas
sombras. Apenas lembre-se de convidá-los para beber. Não espere que os outros
façam como eu fiz.
E saiu batendo a poeira do
chapéu. Quando me levantei, senti que havia levado minha carteira. Fiquei sem
saber como pagaria a conta. A minha e a daquele ano perdido que me roubou.
1 comentários:
Acariciar copos com saudade de um corpo... Quem nunca...
quem nunca teve um ano ruim para bater um papo, para ajudar a se conhecer ou até mesmo para ver a capacidade de nos desfigurar, até não nos reconhecer?
\quem nunca teve um experiência que preferia esquecer, mas fica contente por lembrar e ver que, ao menos, aprendeu algo?
Pois é... eu já tive um ano ruim, que me trouxe coisas muito boas... me deu certezas, que já foram dúvidas e trouxe dúvidas que pareciam ser tão certas...
me abriu e me fechou, me fez ver que o amor de verdade existe e persiste...
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