Confesso que não li o livro. Confesso que não me lembro
do filme nem da primeira versão da novela. O que lembro é basicamente o mesmo
que a maioria: flashes de cenas repetidas exaustivamente em retrospectivas e
afins. Mas “Gabriela” voltou e tem algo a nos ensinar. Esqueçamos que a adaptação
usa de elementos atuais para assegurar a audiência certa familiaridade e,
assim, garantir que volte no outro dia para assisti-la. Vou me ater ao que
senti nessas semanas assistindo. Sim, eu gosto de novela.
Uma obra que se passa em meados da primeira metade do
século passado de um Brasil colônia não-colonizado, podemos dizer. Retratos de
uma sociedade não tão distante se analisarmos pelos aspectos humanos e sociais.
Vemos homens lutando pela conquista do poder sob qualquer
custo, não importando o preço. Os tratos e destratos sociais e humanos, as
convenções políticas firmadas por conveniência do poder.
Vemos homens letrados em uma condições de quase miséria,
se envergonhando por terem apenas a riqueza intelectual, coisa insuficiente
para pagar um sorvete à mulher amada. Época em que um poeta era visto apenas como
sonhador, aspecto que lhe dava a conotação de ser incapaz de prover uma
família, uma fazenda, uma porção de filhos. “Enquanto esse aí sonha e estuda, a
gente trabalha”, diria um dos senhores.
Vemos as quengas do bordel serem achincalhadas pelas senhoras
de Deus por não terem pudor em se despirem ante seus homens. Mulheres decentes não
se despiam nem aos seus maridos, que buscavam as mulheres-damas para apenas se
satisfazerem e voltarem para casa e ainda cumprirem seus papeis de homens. Se voltavam
é porque o que tinham em casa era “melhor” do que o que encontravam no bordel.
Vemos o cortejo às tais quengas por serem um material
disputado entre todos os frequentadores do local. Presenteavam, disputavam, se
envolviam de uma maneira que não faziam em casa, já que as de casa estavam
garantidas e eram de respeito, mesmo que estivessem apaixonadas pelo primeiro
que as tratassem com educação e zelo e respeito. As quengas eram despudoradas
pois o sexo com elas era permitido pelo prazer da conquista. Em casa, o sexo
era apenas o comprimento de uma função.
Vemos esses mesmos maridos e noivos forçando relações com
as esposas em um termo bem usado por um dos coronéis à sua esposa: “hoje vou
lhe usar”. Em uma determinada cena, a esposa quis argumentar sobre a falta do
cortejo, do romantismo, da emoção do envolvimento. Ouviu de volta um “isso é
coisa de mulher. Te dou de um tudo
nessa casa, não preciso dessa ladainha. Agora se deite e abra as pernas”. Em
outra casa, o noivo força a noiva a se
deitar mais ele, alegando que
botou comida na mesa dela. Logo, nada mais natural que a usasse. E a usou. E
ela chorou contida. Certamente será desonrada ante as demais e terminará sendo
tachada de pecadora enquanto ele arrumará uma mais decente para se casar.
Mas... o que aprendemos com isso tudo?
Simples: que ainda somos os mesmos.
Passados cem anos, pouca coisa mudou em muitos aspectos.
Vejo jovens reiterando comportamentos herdados de seus precedentes.
Homens ecoando a mesma frase em quartos por aí e mulheres ainda chorando
contidas enquanto apenas abrem as pernas para que seus maridos cumpram “a
função” que lhes é cabida. Afinal, eles ainda trazem comida para a mesa, pagam
as contas e dão de um tudo.
Vejo ainda muitas mulheres tratando as que se permitem
sair dessa arcaicidade como sendo desonradas, despudoradas, ladras do marido
alheio. Que os mesmos não são os culpados por se permitirem o desfrute da
companhia das pecadoras: as pecadoras é que são as culpadas por não se darem o
respeito. As mesmas mulheres que engolem reiteradas traições achando que, por
seu homem voltar para casa, é delas que eles gostam e amam de verdade. As
outras são apenas diversões que todo homem precisa ter.
O romance foi escrito no final da década de 1960, se
baseando em um Brasil da década de 1920... mas hoje, década de 2010, ainda
somos os mesmos e vivemos como os coronéis, beatas, quengas e afins. Como toda
obra literária, sua interpretação muda conforme vivemos aspectos e situações
diferentes ao longo da vida. Hoje é o que consigo ver e ressentir, baseado em
minhas experiências e conceitos.
Espero que possamos aprender algo e que, ao nos vermos
retratados em uma ficção adaptada, sintamos vergonha de nos assistir assim. E
que essa vergonha seja amarga, a ponto de não querer mais rever as mesmas
cenas, os mesmos capítulos. Porque nunca é bom ver cenas tão familiares em algo
que deveria ser apenas uma obra de fantasia.
Em alguns casos, quando a arte imita a vida, é sinal de
que a vida está precisando de roteiros e autores novos.
4 comentários:
E se eu disser q pensei sobre td isso enqto assistia hj?
Só que ingenuamente achando que as coisas eram diferentes, quando não são tão diferentes assim...
Eu não suporto as cenas dos coronéis e noivinhos com suas mulheres... vi as duas cenas descritas por vc... e particularmente, o tratamento com as mulheres me incomoda muito..
Cheguei a pensar aquele " Deus me livre de viver nessa época e ser mulher"... que irônico! Não muda muita coisa não...
Excelente refexão!
resumindo parece a novela só gira em torno de. gabriela
ao inves do autor colocar gabriela e os sete
porquinhos ou entao gabriela mais cravo e canela
nao so coloca gabriela sem fala no horario da.
novela 23:00 ninguem merece
Perfeito, Felipe. VOu fazer um share do seu post... tem muita gente precisando ler e acordar pra vida por aí! ;-)
nao sou felipe
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