Quando a poesia aparece

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores: ,
Escrevo poemas mas não sou poeta, pois o poeta tem o dom de refutar o próprio dom. Tenho medo e nojo daqueles que se auto-intitulam poetas. Tomam para si algo que nunca foi deles. A poesia não é do poeta: o poeta é quem pertence à poesia.

O poeta é aquele que tem respostas para dúvidas que nem sabemos que teremos.
Ele encontra no ar o som que não corta o silêncio, sente na pele o frio que o verão não traz, ama aquilo que nem mesmo o próprio aquilo é capaz de amar.

A poesia não te traz respostas, nem te enche de dúvidas: ela apenas é apreciável, mastigável, você a engole, a consome, é consumido, é consumado. A poesia se faz em um pequeno sorriso que poema nenhum é capaz de imitar. É o olhar que soneto algum tem o poder de igualar.

E mesmo assim o poeta segue nesta heresia de tentar traduzir a poesia. Ele a transforma em poemas, em músicas, em retratos, em esculturas. Mas como transformar em algo palpável aquilo que tem o poder de transformar aquele que se permite o pecado do sentir? Apenas esses pecadores são capazes de enxergar a poesia onde ela não existe materialmente.

A poesia não é a tradução do que se sente: poesia é justamente o sentir.
Há quem passe uma vida poetizando sem saber que é poeta por direito adquirido.
Há quem veja a poesia sem saber que a mesma assim se denomina.

Não é olhar uma criança e ver apenas uma criança: é saber identificar toda a jovialidade naquele sorriso de ingenuidade e se banhar dessa ingenuidade como quem limpa o corpo da sujeira da maturidade. A criança é o primeiro poeta do mundo, onde cada brincadeira se transforma em um poema.

Não é beijar uma boca e apenas sentir desejo: é usar essa boca como porta para entrar em um sentimento único que traz sensações nunca sentidas e ali se alojar feito um mendigo carente em busca de um peito-abrigo. Não é buscar um abraço como quem espera que tais braços que furtem do mundo que te cerca: é fazer desse encaixe algo que transcende a barreira do tempo e do espaço, se tornando um mundo à parte acessível em um simples aroma, em uma leve brisa da saudade.

A poesia é o lirismo do ser enquanto respira.
O poeta é o ser que perde o ar ao tentar respirar.

Triste daqueles que tacham de loucura, viagem, perda de tempo ou ingenuidade o ato de poetizar pequenos momentos do seu cotidiano. A esses estão guardados apenas o leve sabor de lamber a vida.

Mas o poeta não quer apenas lamber: ele engole, sente rasgar a garganta com cada gole, cada pedaço que mastiga do seu viver. A poesia que suja os dedos e o faz lambê-los; a poesia que escorre a boca ao embriagar-se com seu líquido-lírico.

Há dois anos a poesia me transcendeu. Me fez cometer a heresia de tentar traduzi-la. Sentir eu há muito já a sentia. Apenas não conhecia seu nome. Muito prazer, pois.

3 comentários:

  1. Carol Viana disse...
  2. E o poeta eh aquele que consegue fazê-lo mesmo ao dissertar.... LINDO!

  3. Anônimo disse...
  4. Adoro quando você diz essa coisa de não lamber a vida, de se lambuzar... Quando a gente corre o risco de se deleitar na poesia de viver, acabamos por conhecer os dois lados dela. Uma bela que nos faz rir e uma ferida que dói tão fundo que nos deixa sem ar, sem chão.
    O cerne alma poeta é entender a intensidade das coisas. E você samba na cara da intensidade!

    O prazer é todo nosso!

    ;)

  5. Tatiana Pinto disse...
  6. Como disse no twitter, acabei de chegar e já adorei!!! Simplesmente me deu vontade de sair por ai escrevendo e me lambuzar de toda essa poesia que nos cerca na vida.
    Muito obrigada por desenterrar esse sentimento.
    bj

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