#ContosDoOgro: Um estranho amigo

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
E mesmo sem condições de se levantar, ela acordou e saiu da cama. Deitou-se não para dormir, mas para aliviar a dor física que sentia, causada por mais uma pedrada emocional. Como em todas as outras vezes, haveria de buscar forças onde a escassez reinava. Mais uma vez, outra vez... Chorou 40 dias em 4 horas mal dormidas. Nem dormidas. Ressentidas.

Olhou-se no espelho e não gostou dos olhos inchados. Não gostou do cabelo desalinhado. Seu aspecto estava vazio, olhar vago, envolto por olheiras. A vida seguia, mas era como se estivesse parada num vácuo. O som estava abafado, o gosto estava estranho. Apoiou-se na pia, abriu a torneira, lavou o rosto esperando lavar a alma. Não lavou. Enxugou a face esperando limpar-se da dor. Não se limpou.

O dia a aguardava e era preciso maquiar a dor. Empunhou seu batom como uma espada e desferiu golpes na boca para que se calasse quando questionada se estava tudo bem. Pegou sua base e vestiu-a no rosto tal qual uma armadura, para que os golpes sofridos não fossem revelados. Ergueu-se do chão frio ao qual foi jogada, subindo em seus saltos altos. Camuflou o cheiro da derrota, mais uma, com borrifadas do seu melhor perfume. E saiu. Sua vontade era ficar, mas esse luxo não lhe foi permitido.

Entrou no carro, respirou fundo, olhou-se no retrovisor, segurou o soluço que traria as lágrimas de volta, botou seus óculos escuros, deu partida e saiu sem olhar para os lados. Apenas deixou-se guiar pelo cotidiano que a levava como uma brisa fria de outono. A cabeça cheia de “porquês”, o peito vazio de respostas e a boca com o amargo gosto da dúvida.

Parou no semáforo, fitando o horizonte. Mexeu no rádio mas nada tocaria hoje. Não queria ser mais tocada, não queria mais ser sentida. Apenas queria que a dor acabasse. “Puta que pariu, que dor filha da puta”, pensou, contendo ainda o choro que não cessaria nunca. Ouviu alguém batendo em seu vidro. Olhou e avistou um homem alto, com cabelos compridos, barba comprida e um olhar semelhante ao seu. Sabia como identificar alguém que nunca teve alguém que realmente o notasse. Afinal, ela olhava para uma todos os dias. Desceu o vidro e, sem falar nada, apenas suspirou. O olhar daquele homem a fez banhar-se em lágrimas mais uma vez. Não saberia explicar o motivo, apenas sentiu-se amparada pela figura masculina que ofuscava o sol que ardia lá fora.

Ele ajoelhou-se ao lado do carro, apoiando-se na porta, botou a mão em sua nuca e disse:

- É quando você se cerca de regras cunhadas em vidro que a vida vem e te taca uma exceção na vidraça, desmoronando tudo... É como se a cada decepção, você construísse um degrau. E quando estiver seguro lá no alto, alguém chega e te tira o corrimão. Você não cai: é empurrada. Não é?

Enquanto ouvia, chorou em silêncio. Aquele choro que até as lágrimas se remoem a cair. Quando fechou os olhos e segurou um soluço que a faria desabar em pranto, ele apertou seu ombro e disse, quase como em um sussurro:

- Não evite a queda. Apenas caia.

Levantou-se, mexeu no bolso da jaqueta jeans surrada e tirou algo: um papel dobrado e amassado. Pegou a mão dela e colocou o papel, fechando-a em seguida. Disse para que abrisse apenas quando o mundo não fizesse mais sentido em merecer sua estadia nele. Limpou aquele rosto molhado, apertou-lhe a nuca e virou sentido lugar nenhum. O sinal abriu, os carros buzinaram e cortaram o momento surreal.

Passou o dia com aquela cena na cabeça e com aquele papel nas mãos. Não teve coragem de abri-lo. Mesmo depois de dias, aquele papel ainda continuava fechado e amassado. Era com se, ao abri-lo, revelaria sua desistência de sua existência. De certa forma, aquele papel era sua âncora com a realidade cruel que vinha sem impondo. Decidiu se permitir ser idiota e sorrir, mesmo quando a vontade era chorar.

Outras dores vieram, outras decepções a derrubaram, outros nomes suspirou à noite, outros beijos ansiou esquecer, outros cheiros desejou nunca ter conhecido. Mas prometeu ao vento que nunca abriria aquele papel que, anos mais tarde, ainda guardava junto a ela.

E até hoje, quando a dor ainda é insuportável, ela se deita lembrando daquele homem no semáforo. Daquela imagem que a fez chorar. Daquela voz que a trouxe de volta à vida. E chorou por não poder ajudá-lo como ele a ajudou.

7 comentários:

  1. Anônimo disse...
  2. Conta: o que estava escrito no tal papel. Ela pode não ter querido saber, mas eu quero.

  3. viver enlouquece disse...
  4. Q lindo Felipe! Fiquei curiosa sobre o q tinha no papel, mas sei q vc nunca vai revelar... Posso roubar a frase (devidamente identificada) sobre "regras cunhadas em vidro..."? Beijos, adorei!

  5. Carol Viana disse...
  6. Abrir o papel é desistir de existir... deixar a dor passar e guardar o papel.Não é de fato o que todos fazemos? Guardar as angústias e seguir em frente... Bom te ler!

  7. Anônimo disse...
  8. Discordo, Carol. Acho que o conteúdo do papel é justamente um antídoto pra qdo o desistir de existir batesse. E talvez a chave pra um verdadeiro recomeço e não um prosseguir apenas.E não só pra ela, mas pra ambos, talvez?

  9. Déa Lima disse...
  10. PQP de rosca... simplesmente maravilhoso este texto. Impressionante como vc conhece a alma feminina... bjos meu eterno amigo Ogro.

  11. Lenita de Paula disse...
  12. Pode ser uma mulher, podem ser todas, pode ser qq uma! ler a alma feminina com tanto zelo eh pra poucos.
    Eu tenho meu papel em branco...
    Obrigada por mais este presente em forma de texto!

  13. Anônimo disse...
  14. O problema é que tem certas pessoas que não sabem reconhecer um papel em branco só porque ele veio em outra cor ao invés do branco esperado, aquele de praxe, sabe?

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...